[AGÊNCIA DC NEWS]. São Paulo tem uma relação única com a gastronomia, e de tempos em tempos surgem espaços que logo viram atração. No Centro da cidade, um desses endereços, que começam a criar fama e lotar pelo boca a boca, tem menos de três anos de vida – e uma tortuosa jornada até nascer. É o Bashar Comida Árabe, de Bashar Abo Esmaeil, um refugiado sírio de 33 anos. Seu restaurante já tem três unidades. Mas para falar dele é preciso falar da Síria. Desde que em 2011 começou a guerra civil para derrubar o governo ditatorial de Bashar al-Assad (em dezembro passado ele caiu), literalmente todo mundo se envolveu – dos russos aos americanos, dos turcos aos curdos, dos xiitas aos sunitas e alauítas. É improvável chegar ao número real de mortos. Os dados mais recentes, da ONU, são do fim de 2021 e estimavam em 580 mil mortos, sendo 350 mil identificados – quatro a cada dez mortos não foram oficializados. Num país de 23 milhões de habitantes, mais de 12 milhões de pessoas foram deslocadas, incluindo mais de 6 milhões como refugiados. Um deles, Bashar Abo Esmaeil.
Sua história repete a de milhares de jovens sírios para quem a guerra não trouxe escolhas. Muitos foram recrutados à força para lutar. Esmaeil, na época com pouco mais de 20 anos, vivia na cidade de Salamia, entre Hamã e Homs, a 180km de Damasco, a capital. Foi um dos recrutados. Para fugir do confronto, abandonou a terra natal e começou uma jornada de fuga que o traria ao Brasil, onde chegou há seis anos. Aqui, ele encontrou a chance de reconstruir sua vida, e preservar sua cultura, transformando as memórias da Síria em um negócio no coração de São Paulo. Ele administra junto à família as três unidades do concorrido restaurante Bashar – na rua Dr. Miguel Couto 24 (unidade 1), na avenida São João 292 (unidade 2) e na rua Conselheiro Crispiniano 44 (unidade 3). São endereços que transbordam duas características: a resiliência síria e um ponto de encontro para os amantes da culinária árabe.
Mas até surgir seu lado empreendedor, a vida de Esmaeil foi de incerteza e dor. O temor de ser recrutado à força para a guerra o fez decidir que deveria fugir. Mesmo enquanto cursava a faculdade, o risco de ser convocado era constante. “Eles pegavam os jovens até dentro da faculdade. Tentaram me levar várias vezes, mas consegui escapar, graças a amigos”. A fuga da Síria foi arriscada e difícil. Sem documentos, ele se juntou a um grupo que cruzou a fronteira a pé, em busca de segurança no Líbano, na cidade de Beirute. A condição de refugiado, no entanto, o fez aceitar qualquer condição de vida. “No Líbano, aproveitavam da nossa situação”, disse. Jovens sírios em situação irregular eram forçados a trabalhar praticamente em troca de comida. “Nos usavam para construir o país deles.” Esmaeil fazia diversos trabalhos, desde vender café na rua até tarefas em postos de gasolina, sempre sob condições precárias. “A gente fazia o que mandavam. Não tínhamos escolha.”
BRASIL – Sua sorte mudou ao conhecer um representante do consulado brasileiro no Líbano. “Ele falava um pouco de árabe e ficou conversando comigo, fazendo perguntas. Depois, disse que ia me levar para o Brasil.” Na época, Esmaeil (que só soube o primeiro nome, José, desse funcionário) mal sabia onde ficava o Brasil no mapa. Seu único contato com o país era por meio do futebol. Ainda assim, a promessa de uma nova vida o encheu de determinação. Com a ajuda do consulado brasileiro, se mudou legalmente para o Brasil em 2018, aos 26 anos. Ao desembarcar em São Paulo, mais desafios. Ele se deparou com barreiras como a falta de abrigo e a incapacidade de se comunicar em português. Sem saber para onde ir, passou os primeiros dias dormindo nas ruas da região central da cidade. “Fiquei três ou quatro dias na rua, ali no Brás e na Tiradentes. Não sabia para onde ir nem como pedir ajuda.”
Mas a virada realmente aconteceu quando Esmaeil conseguiu se conectar com um grupo de apoio a imigrantes no Facebook. Por meio da rede, uma pessoa o levou para a Casa do Migrante, um centro de acolhimento localizado nas dependências da Igreja Nossa Senhora da Paz, na Liberdade. Fez 50 anos em novembro do ano passado e funciona até hoje. Lá, eles dão comida, lugar para tomar banho e descansar, auxílio com documentação e aulas de português. “Fiquei um mês lá até conseguir me organizar e buscar trabalho.” O primeiro emprego foi como cozinheiro – em um restaurante em Santo Amaro.
A habilidade na cozinha vinha de casa, na Síria. Aprendeu cedo, com a mãe, e foi essencial para essa nova fase. “Na nossa cultura, a mãe ensina os filhos desde criança a cozinhar, seja menino ou menina. Quando cheguei aqui, já sabia preparar vários pratos da culinária árabe.” Depois de alguns meses trabalhando no restaurante da Zona Sul, Esmaeil começou a fazer esfihas em casa para complementar a renda. O sabor de suas receitas conquistou rapidamente os clientes. “As pessoas gostavam muito das esfihas e começaram a procurar mais. Foi assim que consegui ganhar mais dinheiro e dar um passo para abrir meu próprio negócio.” Alugou um espaço no Largo do Paissandu, no Centro, comprou dois quilos de farinha, pegou um forno antigo que havia guardado e começou o primeiro restaurante. Em sete meses já estava ajudando a sua família na Síria – hoje vivem no Brasil tanto seu irmão mais novo quanto a mãe, que chegou há alguns meses legalmente ao país.
NASCE O BASHAR – Em 23 de junho de 2022, Bashar deu um passo decisivo para transformar sua vida. Após deixar o pequeno espaço que ocupava no Largo do Paissandu, ele alugou um novo local, na Rua Dr. Miguel Couto, no Centro Histórico, e inaugurou o Bashar Comida Árabe. O restaurante oferece shawarma, esfihas, quibes, doces árabes e um buffet por quilo com pratos típicos da cozinha de seu país. O sucesso foi instantâneo. Segundo ele, pela autenticidade dos sabores. Sua avaliação no Google é 4,8 (de 0 a 5).
São cerca de 400 clientes por dia, que consomem pratos que variam entre R$ 20 e R$ 50. O preço do quilo é R$ 80. As outras duas unidades, inauguradas em 2024, também estão localizadas no Centro de São Paulo. A da avenida São João já atrai mais de 100 clientes diariamente, enquanto a da Rua Conselheiro Crispiniano, com apenas dois meses de funcionamento, está conquistando seu público e registra média de 50 clientes por dia – o espaço é bem maior e há dançarinas. Todas as lojas funcionam das 9h às 18h. Por ora, o restaurante não oferece serviço de delivery devido às dificuldades de acesso para motoboys nas três unidades, que estão localizadas em calçadas sem acesso direto para veículos.
TRADIÇÕES – Esmaeil acredita que o sucesso de sua cozinha está ligado à manutenção das tradições culinárias sírias e também na escuta dos clientes para entender o que eles estão achando e o que gostariam de ter no cardápio. “O tempero e as comidas que fazemos são os mesmos que tínhamos na Síria.” E, apesar do crescimento dos negócios, ele faz questão de acompanhar de perto a operação na cozinha. “Não consigo fazer tudo sozinho, mas estou sempre treinando os funcionários, para que todos sigam um padrão. É essencial que a qualidade seja a mesma todos os dias.”
De acordo com ele, um dos segredos para manter o sabor autêntico da Síria no restaurante é ter apenas sírios na cozinha. Esmaeil tem uma equipe com cerca de 50 pessoas, incluindo brasileiros e imigrantes de diferentes origens – mas esses ficam longe dos fogões, porque o empresário acredita que, para preservar a essência da culinária síria, é fundamental que os pratos sejam preparados por quem conhece as tradições. “Conseguir montar uma equipe boa é um dos maiores desafios”, afirmou. “Já tive muitas dificuldades, mas atualmente tenho um time muito bom.” Com uma jornada digna de filme, Bashar Esmaeil inspira pessoas e resume em sua jornada um insuperável provérbio árabe: “A hora mais escura do dia é a que vem antes de o sol nascer”.