BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – “A cooperação imigratória moralmente falida da União Europeia com as autoridades líbias equivale à cumplicidade em violações horríveis de direitos humanos. As tentativas de impedir as travessias a qualquer custo demonstram um total desrespeito pela vida e dignidade de imigrantes e refugiados.”
No começo do mês, era assim que a Anistia Internacional expressava sua preocupação com a visita do comissário europeu e de ministros de Itália, Grécia e Malta a Benghazi. No dia seguinte, a comitiva liderada por Magnus Brunner teve de sair às pressas da Líbia após uma das facções que controlam o país declarar o político austríaco persona non grata.
Brunner estava na Líbia porque, nas últimas semanas, explodiu o número de travessias de imigrantes em situação irregular da região para a Europa, na contramão do que ocorre no resto do continente. Ele buscava reavivar a política de cooperação, criticada pela Anistia, que freou o fluxo irregular pelo país na década passada.
Em 2016, 163 mil pessoas chegaram à Itália vindas da Líbia, no ápice do processo. Um programa bancado pela União Europeia distribuiu recursos para facções e governos norte-africanos trabalharem no combate ao contrabando e ao tráfico de pessoas. O programa resultou em um acúmulo de imigrantes no país, algo que a precária administração local enfrentou com violência e prisões.
O volume de chegadas de fato caiu nos anos seguintes, porém a política europeia deu força financeira e política a grupos armados que sustentam a facção de Khalifa Haftar, que controla o leste líbio. Foi ele quem desconvidou Brunner, em 8 de julho.
Segundo análise da Chatham House, centro de estudos britânico, o esquema europeu, mal concebido, acabou gerando um ganho financeiro duplo às milícias: ganham para prevenir a imigração e também para facilitá-la, já que coiotes e traficantes logo entenderam que a manutenção da atividade era questão de preço.
De janeiro a junho deste ano, as travessias pela rota oriental do Mediterrâneo diminuíram 24%. Poderiam ter caído ainda mais não fosse o surgimento de um novo corredor, entre a Líbia e a ilha grega de Creta, de 340 km de mar.
Segundo a Frontex, a agência europeia de fronteiras, 20,8 mil imigrantes chegaram à Itália no primeiro semestre deste ano partindo do litoral líbio. Um aumento de 80% em relação ao mesmo período do ano passado. Pelo mesmo motivo, a rota central do Mediterrâneo acumulou 29,3 mil detenções, 12% a mais do que o registrado em 2024 e ainda a mais utilizada para chegar à Europa.
“Estamos preocupados com a situação na Líbia e com o recente aumento das partidas irregulares”, afirmou um porta-voz da Comissão Europeia antes da fracassada visita da UE ao país. Antonio Tajani, chanceler italiano, foi mais enfático, dizendo que “a Líbia é uma emergência que a Europa precisa resolver.”
Itália e Grécia têm uma explicação mais elaborada para o aumento de travessias do que a simples ganância das milícias. Estaria em curso uma operação híbrida russa nos moldes da que ocorre há anos na divisa entre Polônia e Belarus.
O governo de Aleksandr Lukachenko, em conluio com a Rússia, estimula a passagem de imigrantes em situação irregular como forma de desestabilizar o vizinho. Em desrespeito à legislação europeia, tolerado por Bruxelas, a Polônia cercou seu lado da fronteira e recusa pedidos de asilo e refúgio de forma quase instantânea.
A Rússia, que já usava a Líbia para driblar sanções e negociar armamentos, seria, segundo alguns analistas, o principal motor para o repentino aumento de travessias neste ano. Haveria também interesse do Kremlin em instalar uma base em Tobruk, cidade que abriga o governo liderado por Haftar. Substituiria Tartus, na Síria, que Vladimir Putin abandonou após a queda do regime de Bashar al-Assad, em dezembro.
Há quem veja exagero na interpretação, lembrando que Putin tem uma complexa frente de guerra na Ucrânia. É certo, porém, que a Líbia já está entre as áreas de atuação do Africa Corps, mercenários sucessores do grupo Wagner, envolvidos em golpes de Estado e também na exploração de recursos naturais. Contrabando e tráfico de imigrantes, no caso, seriam apenas novas frentes comerciais.
Enquanto Roma e Atenas não conseguem convencer Bruxelas e a Otan sobre o tamanho do problema, o governo grego já toma as providências de praxe. Aprovou no Parlamento a suspensão da concessão de asilos e refúgios por três meses e a deportação automática de quem desembarca em Creta.
“Situação de emergência requer medidas de emergência”, afirmou o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis.
Números das travessias de migrantes
28,5 mil
imigrantes chegaram à Itália vindos da Líbia em 2011, quando o regime do ditador Muammar Gaddafi caiu
163 mil
imigrantes chegaram à Itália vindos da Líbia em 2016, no auge da crise imigratória
20,8 mil
imigrantes chegaram à Itália vindos da Líbia na primeira metade de 2025, aumento de 80% em relação ao mesmo período do ano passado
US$ 978 milhões
ou 4,8% do PIB foi a receita da Líbia com contrabando e tráfico de pessoas em 2016, segundo estimativa da Chatham House