Há quase 100 anos, em 1925, Graciliano Ramos começou a escrever Caetés. Seu primeiro romance, no entanto, só foi publicado em 1933. Nesse intervalo, o ainda desconhecido escritor viveu a experiência de administrador público – e mostrou ser rigoroso nos gastos. Eleito prefeito de Palmeira dos Índios, no agreste de Alagoas, onde foi morar aos 18 anos – era natural de Quebrangulo, também em Alagoas –, Graciliano assumiu o cargo em janeiro de 1928, aos 35, e no ano seguinte escreveu detalhado relatório ao governador Álvaro Correia Pais que chamou a atenção pelo estilo. Muitas vezes informal, outras vezes áspero, informava com pormenores o que sua gestão fazia para equilibrar as contas. Essa história é contada no livro O Prefeito Escritor (Editora Record, 2024, com prefácio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva).
Logo no início do primeiro relatório, datado de 10 de janeiro de 1929, em que presta contas sobre o trabalho realizado no ano anterior, o prefeito Graciliano Ramos conta que sua primeira medida foi “estabelecer alguma ordem na administração”. Não era tarefa fácil, pelo que ele relata em seguida, ao afirmar que todo mundo queria dar seu pitaco na gestão municipal. Os poderes paralelos. “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante dos destacamentos, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com prefeitos coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam.”
Conforme narra o prefeito ao governador, não foi nada tranquilo. Havia resistência interna (“mole, suave, de algodão em rama”) e externa (“sorna, oblíqua, carregada de bílis”). E com alguns riscos, já que algumas pessoas “me davam três meses para levar um tiro”. Não consta que tenha levado. Graciliano agradece aos funcionários que permaneceram (vários saíram), por cumprir suas obrigações e, principalmente, por não errar nas contas.
LUZ – Em tempos de apagão na maior cidade do país, Graciliano Ramos também teve seus percalços, ao relatar o valor pago pelo serviço em 1928. “Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz”, afirmou. Mais adiante, no relatório sobre a gestão de 1929, uma reclamação com sua dose de humor: “A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá”. Intrujar é enganar. Bluff é um estrangeirismo para blefe.
Ele também explica por que desistiu de construir um cemitério, já que o existente logo seria insuficiente para a cidade. Os trabalhos da gestão, “necessários aos vivos”, não permitiram a obra. “Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam”, disse o prefeito. E também reclama do caminho que vai de Palmeira dos Índios para Quebrangulo, “original produto de engenharia tupi, tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford e por lagartixa”.
O rigor com as contas deu resultado, como Graciliano atesta já no relatório referente a 1929. A receita, com valores em réis, a moeda da época, cresceu quase 41% em relação ao ano anterior. E o prefeito lembra que no orçamento “houve supressão de várias taxas que existiam em 1928”. Não houve “rigores excessivos”, segundo ele. “Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo às extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores [cobradores]”.
Na biografia O Velho Graça (Boitempo Editorial, 2012), Dênis de Moraes conta que os relatórios incomuns do prefeito chegaram às mãos do editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, e ele quis saber se o autor tinha manuscritos prontos. Caetés saiu pela editora Schmidt em 1933. Logo depois vieram São Bernardo (1934), Angústia (1936) e o clássico Vidas Secas (confira aqui a bibliografia do autor). A esta altura, Graciliano já tinha saído da prefeitura (renunciou em 1930). Ele também foi tradutor: em 1950, por exemplo, traduziu A Peste, de Albert Camus. Morreu aos 60 anos, em março de 1953 (faria 61 em outubro). Nesse ano, foi publicado Memórias do Cárcere, sobre sua prisão durante o período do Estado Novo. O poder público não deixou Graciliano Ramos em paz.