LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – A decisão do ministro Flávio Dino, referendada pela maioria do STF (Supremo Tribunal Federal), de suspender as emendas impositivas apresentadas por deputados e senadores provocou uma queda de braço entre Legislativo e Judiciário. A controvérsia é acompanhada pela cientista política Beatriz Rey, 39, autora de um livro sobre o Congresso brasileiro.
Rey tem a sensação de já ter visto esse filme antes. Ela se especializou em Legislativo em universidades americanas e morava nos Estados Unidos quando o tema esteve em evidência por lá. “Entre 2011 e 2021, houve uma moratória de emendas individuais, com a concordância de democratas e republicanos, pois elas eram frequentemente associadas a casos de corrupção”, diz.
De acordo com a cientista política, é legítimo que um deputado queira levar benefícios para a comunidade que o elegeu e fature dividendos eleitorais por isso. “Chamamos esse processo de credit claim, de ir lá e levar os louros, porque é assim que se cria o laço entre o parlamentar e o eleitor.” O problema é quando o processo não é transparente e há desvio de finalidade.
Nos Estados Unidos, depois de dez anos suspensas, as emendas voltaram, mas com uma série de regras. “O parlamentar tem que declarar que não há interesse pessoal envolvido, nem dele nem de familiares”, diz Rey. Há também a exigência de transparência e de que essas emendas sejam parte de programas de governo desenhados previamente.
Apesar de ver semelhanças, Rey é cautelosa ao comparar o problema brasileiro e o americano. “Precisamos primeiro entender o caso brasileiro e ver como ocorreu o desvio de finalidade. Sou contra soluções únicas para casos diferentes”, diz.
Para ela, o Legislativo ganha poder na democracia brasileira pelo menos desde 2009. “Foi o primeiro ano em que o Congresso aprovou mais leis criadas por parlamentares que pelo Executivo e deixou de ser um carimbador de decisões do presidente da República. Passou a cumprir o papel do Legislativo, que é legislar.”
Outro marco ocorreu entre 2014 e 2015, quando o Congresso criou primeiro na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), depois como reforma constitucional as emendas impositivas, que o Executivo tem a obrigação de pagar. “A situação favorecia isso: uma presidente fraca, Dilma Rousseff (PT), e um presidente do Congresso forte, Eduardo Cunha (então no PMDB), que conhecia muito bem o regimento e sabia como manipulá-lo.”
O mesmo processo primeiro mudança na LDO, depois mudança constitucional foi utilizado em outro período de presidente fraco em relação ao Congresso: Jair Bolsonaro (PL). Em 2019, no bojo de uma minirreforma, foram aprovadas as emendas de transferência especial, apelidadas de “emendas pix”.
“As emendas pix são uma excrescência. É um dinheiro que o Congresso manda para os entes federados sem estar associado a algum tipo de projeto. Vai direto para estados e prefeituras sem a gente saber o que vai financiar. Um cheque em branco”, diz Rey.
“Faz sentido bloquear emendas diante da recusa do Congresso em liberar dados, mas eu acho que a decisão do ministro Flávio Dino, embora ajude, não resolve o problema”, afirma Rey. “O que a gente tem visto é que, a cada ciclo orçamentário, o Congresso cria ideias mirabolantes para abocanhar mais uma parte do orçamento.”
Ela se refere, por exemplo, às emendas de relator. Elas já existiam anteriormente e passaram a ser usadas durante o governo Bolsonaro para dificultar a fiscalização. Os deputados “se escondem” sob a capa do relator para enviar dinheiro para suas bases.
Para Rey, o combate a essas práticas deve partir de um acordo interno no Parlamento. “Nesse sentido acho que vale o exemplo dos Estados Unidos. Os agentes políticos precisam chegar a um consenso de que isso é um problema e trabalhar para resolvê-lo.”
Dentro do debate brasileiro sobre o tema, Rey defende três ideias. A primeira é o fim de todas as emendas que não tenham “remetente”, “destinatário” e valor claramente definidos.
A segunda é o vínculo das emendas a projetos estratégicos, como ocorre nos Estados Unidos.
A terceira é obrigar os estados e municípios beneficiários a publicar as contas nos portais do governo, para facilitar o trabalho dos órgãos de fiscalização.
Rey defende que o debate sobre as emendas deveria ser comandado pelo Executivo, mas não acha que isso vá acontecer. “Tenho conversado com várias pessoas em Brasília, e a opinião geral é que o Lula (PT) que conversava, que participava diretamente da negociação política, não existe mais. A articulação está fatiada, com muito bate-cabeça nas agendas importantes. Há um desperdício de capital político.”
“A gente está falando de um presidente que sofreu um processo de prisão, que muito provavelmente se sente perseguido. É também um presidente mais velho, com menos energia. A gente viu na eleição americana que não dá para desconsiderar esse dado. Outra diferença é que, no Lula 1 e no Lula 2, o presidente tinha gente que o assessorava de maneira melhor, falava o contrário do que ele pensava. Faltam esses quadros do PT, eles se perderam com o mensalão e o petrolão”, afirma Rey.
Para ela, na falta de atitudes do Legislativo e Executivo para mudar o modelo atual, organizações da sociedade civil podem exercer pressão para exigir uma reforma. “Emenda orçamentária é dinheiro que financia ambulância, é desse dinheiro que a gente está falando. É isso que a gente precisa discutir, como melhorar esse gasto. Quanto mais pressão de fora do sistema político, melhor.”
Difícil na prática, a ideia de reunir os agentes políticos para discutir o problema apareceu ao menos no papel. Em seu voto no plenário do STF, Dino propôs uma “reunião institucional” incluindo um representante do poder Executivo, os presidentes da Câmara e do Senado, o procurador-geral da República e juízes do STF, “em busca de solução constitucional e de consenso, que reverencie o princípio da harmonia entre os Poderes”.