“Engraxar?” Eles estão há mais de um século no Centro Histórico, de olho em sapatos cada vez menos usados
Flavio queria ser advogado, mas se encantou com a profissão de engraxate: "Uma arte"
Crédito: Vitor Nuzzi
A diminuição do número de clientes não desanima os sete engraxates que todos os dias ocupam dois quiosques no Centro Histórico
Além de engraxar e consertar sapatos, eles formaram um ponto de encontro e mantêm clientes há décadas
Por Vitor Nuzzi
[AGÊNCIA DC NEWS]. “Engraxar? Graxa?” Quem passa na área entre dois quiosques no Centro Histórico de São Paulo, na praça Antônio Prado, perto da B3 e do Farol Santander, dificilmente deixa de ouvir a pergunta feita quase ao mesmo tempo por mais de um deles. Flavio, Fernando, Fábio, Abelardo, Josué, Valdevino e Joel estão lá todos os dias, das 8h às 18h, atrás de clientes – para engraxar ou consertar sapatos. A clientela vem diminuindo, mas muitos frequentam o local há anos, e às vezes vêm até de outras cidades. Os quiosques estão lá desde 1986. Engraxates, que até já habitaram crônica de Mário de Andrade, são vistos por ali desde o final do século 19.
Era uma atividade cotidiana. Em dezembro de 1950, por exemplo, o prefeito nomeado Lineu Prestes – ex-secretário estadual da Fazenda e reitor da USP – promulgou a Lei 3.976, estabelecendo regras para o funcionamento dos “salões de engraxates, anexos aos salões de barbeiros, cabeleireiros e similares”. Um precisava estar isolado do outro. E apenas aos engraxates “devidamente licenciados” era permitido exercer a profissão nos logradouros públicos. Havia dois tipos de licença: para a zona central e nas zonas urbanas ou rural. Caixas e outros pertences dos não licenciados seriam confiscados pelo poder público. A atual administração municipal, 72 anos depois, regulamentou a lei, por meio do Decreto 62.114, de dezembro de 2022. Os atuais engraxates, autônomos, têm permissão de uso concedida pela Secretaria Municipal de Subprefeituras.
Atualmente, são sete engraxates no total. Já foram 14 – metade em cada quiosque. E mais dois reservas em cada. “A gente fazia de 30 a 40 sapatos por dia. O pessoal fazia fila. A gente não dava conta”, disse Flavio Augusto Guimarães, 47 anos, que abandonou o sonho de ser advogado quando veio do interior de Minas Gerais para São Paulo, 28 anos atrás. “Virei engraxate e me apaixonei”, afirmou, enquanto engraxava os sapatos de um rapaz de 27 anos que seriam usados em um casamento. Levou uns 15 dias para pegar o jeito. “Engraxar sapato é uma arte. Precisa gostar do que faz, saber passar a graxa, a quantidade. É um hospital dos sapatos.” Se engraxava até 40 pares, hoje não passa de 12 pares, a R$ 20 cada (ou R$ 25 com tinta). Todos também fazem reformas, “serviços de sapateiro”, como salto, colagem e pintura.
Antes de Flavio veio o irmão Fernando, 46 anos. Ele saiu de Tarumirim, cidade de 14,7 mil habitantes (pelo Censo de 2022) em Minas Gerais, na região de Governador Valadares, em 1995. “Já pensava em vir pra cá. Mas não pensava que fosse tão cedo. Tive de largar colégio, família, amigos.” O plano de Fernando era ficar em São Paulo durante um tempo, guardar dinheiro e ir para os Estados Unidos. Acontece que ele começou a namorar, casou e teve quatro filhos. Aos 17, começou a trabalhar como engraxate. Aos 27, comprou sua casa, na região de Pedreira, bairro do extremo sul de São Paulo. O carro veio no ano seguinte.
Fernando veio de Minas há quase 30 anos, formou família e desistiu dos EUA Crédito: Vitor Nuzzi
PONTO – Nos dois casos, os irmãos vieram para ajudar a família. Flavio conta que eles já tinham tios e primos que trabalhavam como engraxates, alguns há quase 50 anos. Assim como alguns clientes frequentaram o local durante décadas e levaram filhos e netos. Caso do rapaz que levou os sapatos para engraxar. “Meu pai vinha aqui”, disse. A Engraxataria São Paulo, nome do estabelecimento – cada funcionário usa uma camisa preta com o logotipo –, virou ponto de encontro de artistas, celebridades e políticos. Tudo devidamente documentado no Instagram, com 30,1 mil seguidores. Recentemente, passaram por ali o governador Tarcísio de Freitas, o prefeito Ricardo Nunes e o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, vereador eleito pelo PT. É um espaço ecumênico. “PSDB, PT, PL…”, disse Flavio.
Mas a clientela mais constante é formada por funcionários públicos, bancários e pessoal do mercado financeiro. “O que atrapalhou muito foi que os bancos e advogados saíram daqui”, afirmou Fernando. Os bancos, por exemplo, instalaram suas sedes em outras regiões. Mesmo assim, muitos funcionários de agências ainda estão por ali. Só quem nem todos, ou poucos, usavam sapatos hoje em dia. “Antes todo mundo usava terno. Pode olhar agora”, disse Fernando, apontando para a rua. Ninguém de terno, quase todos de tênis ou o famigerado sapatênis. Assim, é cada vez mais difícil encontrar engraxates. Alguns, esparsos, são vistos nas proximidades das praças da Sé ou da República. A Sapataria Centro Velho, que ficava na rua do Comércio, fechou durante a pandemia.
Habituados com os macetes do Centro, os irmãos afirmam que a segurança melhorou no período recente. “Ninguém mexe com nós, mas a gente via roubo o dia todo aqui. Agora melhorou”, disse Flavio. Fernando concorda. “Um ano atrás, você não tirava foto no Marco Zero (na Praça da Sé). Agora você pode”, afirmou. “Mais seguro já está. Precisa revitalizar, trazer pessoas para o Centro.”
Flavio não virou advogado. Mas sua filha Samara está no primeiro ano de Direito. Fernando não foi para os Estados Unidos, mas faz planos. “Depois que encaminhar todos (os filhos), vou dar uma paradinha. Posso dizer que eu venci.” Paradinha significa reduzir o ritmo. Ele não para de fazer cálculos. Sempre foi assim, desde que chegou adolescente a São Paulo, um hábito que só cresceu na convivência com o pessoal da Bolsa. “Se você um dia ganha 100 e gasta 110, está na roça. A vida é uma conta.” O segredo, explica, “é trabalhar sério e não passar por cima de ninguém”.