Governos financiaram morte do capitalismo sem perceber, diz ex-ministro grego

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O economista grego Yanis Varoufakis, 64, tem uma trajetória singular. Foi prestigiado professor de política econômica na Austrália e no Reino Unido e ministro das Finanças da Grécia durante a mais aguda crise do país neste século, além de economista-chefe do gigante dos videogames Valve. Agora, ele defende uma tese provocativa: “O capitalismo de mercado está morto”.

No livro que lançou em 2023, “Tecnofeudalismo: O Que Matou o Capitalismo”, que chegou ao Brasil neste ano pela Editora Crítica, Varoufakis afirma que grandes empresas de tecnologia substituíram os mercados por feudos digitais, e o lucro, por rendas provindas da nuvem —de forma similar ao que os senhores feudais faziam com a terra.

“Os governantes da época em que fui ministro, em 2015, estavam inadvertidamente alimentando, com dinheiro do Estado, os investimentos gigantescos em capital da nuvem —eles estavam dando à luz o tecnofeudalismo sem nem mesmo perceber”, disse o escritor, sediado na capital da Grécia, onde ele ministra aulas de economia na Universidade de Atenas.

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PERGUNTA – O capitalismo está morto? O capitalismo de mercado clássico alguma vez existiu de fato em países em desenvolvimento como o Brasil?

YANIS VAROUFAKIS – O poder do capital —sua ditadura— está mais forte do que nunca após o surgimento de uma nova mutação do capital, que chamo de capital da nuvem. Mas o capitalismo, como sistema baseado em mercados e lucros, agora está morto no sentido de que o capital da nuvem substituiu os mercados por feudos digitais —que parecem mercados, mas não são mercados—, e o lucro, por rendas da nuvem —por exemplo, os 40% do preço com que a Amazon fica para vender qualquer coisa para você.

P – O sr. pode definir brevemente o que é “capital da nuvem”?

YV – Capital é definido, desde os primórdios das sociedades humanas, como “meios de produção produzidos”. Isto é, arados, tratores, robôs industriais e outras máquinas e ferramentas que produzimos para produzir outras coisas.

Eu defino o capital da nuvem como meios produzidos de modificação comportamental. Por exemplo, a combinação de equipamentos, como o celular, e algoritmos —como os do Twitter, Amazon ou Uber—, que você treina a te conhecer, com objetivo de oferecer serviços personalizados e conselhos que você valoriza antes que esse capital da nuvem ganhe sua confiança. Assim, o capital da nuvem não apenas implanta desejos em sua mente mas também os atende diretamente vendendo coisas que saciam esses desejos, contornando o mercado capitalista.

Essa é uma forma genuinamente nova e onipotente de capital.

P – Durante seu tempo como ministro das Finanças da Grécia (2015), o sr. estava negociando com instituições enquanto as principais empresas de tecnologia já estavam acumulando poder e dados. Nessa época, o sr. observava sinais do que agora chama de “capital da nuvem”?

YV – Não. O surgimento do capital da nuvem —e do tecnofeudalismo— não era visível naquela época nas salas fechadas, quando políticas misantropas estavam sendo decididas contra a grande maioria de nossas populações. No entanto, desde 2009, a combinação de austeridade para muitos e impressão de dinheiro para os grandes bancos e outros gigantes corporativos estava causando uma mistura estranha de, por um lado, investimento muito baixo, e, por outro, enorme liquidez nos mercados financeiros. Como se revelou, os únicos negócios que investiram essa liquidez foram as big techs.

Em vista disso, os governantes daquela época, em 2015, estavam inadvertidamente alimentando, com dinheiro do Estado, os investimentos gigantescos em capital da nuvem. Eles estavam dando à luz o tecnofeudalismo sem nem mesmo perceber.

P – Como responde àqueles que argumentam que o investimento governamental em tecnologia foi simplesmente racional dado o potencial de crescimento do setor?

YV – Esta é a essência do fracasso coletivo: situações em que o que é racional para cada um contribui para nossa perdição coletiva —um caso generalizado do dilema do prisioneiro [problema clássico da teoria dos jogos que ilustra como a busca pelo melhor resultado individual, em vez de um resultado cooperativo, pode levar a um resultado pior para todos os envolvidos].

Mais especificamente, governos investiram muito em tecnologia. Por exemplo, a própria internet nunca teria sido criada por empresários privados. Toda tecnologia em seu celular foi inventada devido a algum subsídio governamental. No entanto, o público nunca recebeu um único dólar em retorno, pois essas tecnologias foram totalmente privatizadas pelos gigantes da tecnologia.

P – Seu livro foca muito a tecnologia, um dos principais temas em “O Capital”, de Karl Marx. Na sua visão, as relações de produção e propriedade ainda são os principais obstáculos impedindo que a tecnologia beneficie a maioria da população?

YV – Mais do que nunca. A lógica de “O Capital” de Marx é, hoje, ainda mais pertinente do que nunca. Pense em robôs industriais equipados com IA e agentes automatizados. Eles poderiam nos libertar do trabalho que esmaga a alma. Mas, quando possuídos por uma minoria minúscula, o que estão fazendo é empurrar as massas para uma liberdade ainda menor e maior precariedade.

P – Quando o sr. trabalhou na Valve, a empresa por trás da Steam —que detém capital da nuvem significativo ao quase monopolizar a venda de jogos para computador—, teve uma noção do que estava por vir?

YV – Uma noção vaga, sim. Foi quando encontrei pela primeira vez o surgimento espontâneo, dentro de comunidades de videogames multiplayer, o surgimento do poder tecnofeudal —na forma da corporação que realmente é proprietária de todo o ambiente no qual as pessoas trabalham e brincam ao mesmo tempo.

P – Novos negócios de IA como OpenAI e Anthropic são vassalos das grandes empresas da nuvem? Quando a OpenAI tenta construir seus próprios centros de dados, está tentando se tornar um novo senhor tecnofeudal?

YV – Eles possuem muito capital da nuvem. Mas, enquanto se mantêm no modelo tradicional de venda de serviços ou assinatura, eles são empresas capitalistas padrão. Podemos ver isso pela saga DeepSeek [a IA chinesa que surpreendeu o mercado com desempenho à altura do ChatGPT]: no momento em que um concorrente chegou oferecendo um serviço similar por menos, a OpenAI perdeu feio.

E, sim, eles são vassalos, uma vez que empresas tecnofeudais, como a Microsoft, os cooptam para aumentar os poderes de extração de renda de seu capital da nuvem —ou quando dependem dos data centers de outros conglomerados. No entanto, no momento em que criarem sua própria capacidade de construir feudos da nuvem, em vez de mercados, eles se tornarão senhores tecnofeudais.

Para isso, não basta construir complexos de processamento de dados. Eles precisam encontrar uma maneira de nos treinar para treiná-los para alterar nossos desejos e nos vender diretamente coisas que satisfaçam esses desejos.

P – Qual é a diferença entre o monopólio através da inovação descrito pelo economista Joseph Schumpeter e o estado atual da economia da nuvem?

YV – Schumpeter estava abordando o capital monopolista, corporações como Ford, Edison e Westinghouse.

O tecnofeudalismo difere profundamente do capitalismo monopolista no seguinte sentido: o capital de Henry Ford era um meio de produção manufaturado. Por isso, se esforçava para monopolizar o mercado de transporte, para lucrar garantindo que você comprasse o carro que saía de sua linha de produção.

Em contraste, Jeff Bezos (dono da Amazon) não depende de capital produtivo, mas de capital da nuvem cujo superpoder é modificar o comportamento do consumidor para encerrá-lo em seu feudo da nuvem e assim extrair uma renda gigantesca da nuvem de coisas que você compra lá, produtos em que Bezos não teve nenhuma participação.

P – Por que as pessoas participam de trabalho digital não remunerado? O que mudou sobre como o valor é extraído?

YV – Por uma série de razões: a emoção de se comunicar com amigos e estranhos, a esperança de se tornarem influenciadores e um dia ganharem muito dinheiro, engajamento político, até mesmo vício. Por que as pessoas fazem isso é irrelevante. O que importa é que acabam trabalhando por horas e horas todos os dias de cada semana ajudando a construir o capital da nuvem que, então, permite aos capitalistas da nuvem extrair enormes rendas da nuvem.

Enquanto em termos da economia política marxista nenhum valor é criado no Instagram ou TikTok, o trabalho gratuito de bilhões de pessoas ajuda a construir o estoque de capital da nuvem de muito poucos que, então, o usam para extrair enormes valores excedentes que os proletários convencionais geram.

Em resumo, o trabalho assalariado continua a produzir todo o valor excedente, mas o trabalho gratuito contribui para o poder dos capitalistas da nuvem de extrair partes cada vez maiores do valor excedente.

P – As políticas contemporâneas de esquerda focam renda básica universal e justiça tributária, reduzindo a ênfase nas relações trabalhistas. Os progressistas têm dificuldade em propor um futuro que considere o mundo digital e as novas formas de trabalho?

YV – Sem uma base marxista, os progressistas caem na armadilha de tratar os sintomas, não a causa. Qual é a causa? Não é falta de regulamentação ou o fato de que os algoritmos nos espionam. Não, o problema não é o que a máquina sabe, mas quem possui a máquina.

Dito isso, me convenci de que a renda básica é uma arma poderosa para radicalizar as massas e trazer a socialização urgentemente necessária dos meios de produção, troca e comunicação. Mas não renda básica como meio de aplacar as massas para que aceitem os direitos de propriedade atuais sobre o capital.

P – Aqui no Brasil, a esquerda está discutindo uma semana de trabalho de quatro dias. Isso ajudaria de alguma forma na resistência ao tecnofeudalismo?

YV – Reduzir as horas de trabalho e transferir valor de volta aos seus criadores é sempre uma campanha digna. No entanto, tais campanhas terão efeito contrário se não forem vistas como um primeiro passo em direção à socialização dos meios de produção, troca e comunicação.

P – Qual é sua visão sobre o futuro deste tecnofeudalismo emergente?

YV – Eu me recuso a prever. É uma recusa ética. Diferentemente dos meteorologistas cujo trabalho é prever, porque o tempo não se importa com suas previsões, nosso trabalho não é prever resultados, mas agir para evitar resultados misantropos e para inaugurar bons resultados.

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RAIO-X YANIS VAROUFAKIS, 64

Falero (Grécia), 1961. Professor de economia da Universidade de Atenas, com passagens pelas universidades de Sydney e King’s College, de Londres. Ex-ministro das Finanças da Grécia, também foi economista-chefe da Valve, a dona da plataforma de venda de jogos Steam.

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