Inconsistências na origem do arcabouço alimentam desconfiança um ano depois

Uma image de notas de 20 reais

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um ano após a sanção do novo arcabouço fiscal, a regra proposta pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda está sob desconfiança diante da ausência de respostas para desafios semeados durante a elaboração do desenho pelo ministro Fernando Haddad (Fazenda).

Entre os problemas de origem que ameaçam sua sobrevivência está o descompasso entre o ritmo de expansão do limite (até 2,5% acima da inflação por ano) e o crescimento das despesas obrigatórias, que avançam de forma mais veloz por meio de vinculações ou decisões do próprio Executivo.

Formuladores da regra já sabiam desde o início das dificuldades que os aguardavam e que sua sustentabilidade dependerá de medidas duras e impopulares. Ainda assim, as resistências da ala política retardaram o reconhecimento, pelo Executivo, da necessidade de efetuar cortes e enfrentar o debate.

A Folha de S.Paulo colheu relatos de técnicos, autoridades e parlamentares que participaram das discussões para tentar reconstituir o processo de elaboração da regra que, hoje, baliza a gestão das contas públicas do país.

Por um lado, a imposição do limite de gastos consagrou a visão defendida por Haddad e outros membros da equipe econômica de que prescindir de uma trava para as despesas poderia, no limite, ameaçar o mandato do presidente Lula.

Por outro, os próprios formuladores admitem que o desenho final não foi o melhor -mas, uma vez aprovado, o governo não poderá alterá-lo sem pôr sua credibilidade a perder.

O arcabouço fiscal foi divulgado pela Fazenda em 30 de março de 2023, cinco meses antes do prazo estipulado em emenda constitucional aprovada na transição de governo.

Uma apresentação de 12 páginas continha os princípios definidos em conversas inicialmente restritas a um número pequeno de pessoas na Fazenda, que incluía Haddad, o então secretário-executivo, Gabriel Galípolo, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, e o secretário de Política Econômica, Guilherme Mello.

Sob a justificativa de evitar vazamentos, esse grupo dispensou o apoio até mesmo dos servidores mais experientes em contas públicas. Também buscou despistar a área técnica com pedidos diversos de simulações para a trajetória do limite de gastos, mesclando parâmetros reais com outros figurativos.

A estratégia era uma tentativa de evitar a morte precoce do arcabouço. Se os detalhes viessem a público antes de Lula estar convencido da regra, ela poderia se tornar alvo de críticas da ala do PT que desejava perseguir apenas o resultado primário.

A avaliação de técnicos, porém, é de que todo esse sigilo acabou propiciando uma formulação muito mais teórica, sem atacar aspectos práticos e inconsistências. Nas palavras de quem viveu o processo, a Fazenda estruturou a casca, mas não endereçou os problemas do lado de dentro.

O Ministério do Planejamento e Orçamento, sob o comando de Simone Tebet, tomou conhecimento do desenho do arcabouço em um almoço no dia 9 março de 2023. Além da ministra, estavam presentes o secretário-executivo, Gustavo Guimarães, e o então secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos. Pela Fazenda estavam Haddad, Galípolo e Ceron.

Segundo os relatos, a equipe do Planejamento assistiu a uma apresentação muito semelhante àquela feita semanas depois à imprensa. Não havia ainda texto legal, nem simulações detalhadas para as despesas por dentro do limite.

Além da preocupação com as inconsistências, houve divergência sobre as metas fiscais. Haddad quis zerar o déficit em 2024 -o que demandou medidas extras para reforçar o caixa do governo em R$ 168 bilhões. O Planejamento defendeu um ajuste mais gradual, com um déficit de 0,25% do PIB (Produto Interno Bruto) no primeiro ano de vigência da regra, mas foi voto vencido.

Depois, Haddad também apresentou o arcabouço ao vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e à ministra Esther Dweck (Gestão e Inovação), que integra a JEO (Junta de Execução Orçamentária).

A partir daí, as inconsistências foram tema constante de reuniões técnicas e também políticas. As equipes também tentaram simular as contas por dentro do limite.

Um dos participantes desses encontros relata que era sabido que existia um “problema algébrico, matemático” que não estava sendo considerado. O aviso foi dado: ou o governo endereça os problemas, ou o mercado continuará duvidando da capacidade do arcabouço controlar a dívida pública.

Dweck, segundo os relatos, teve um papel relevante para convencer Lula de que o arcabouço daria certo. A ministra, referência na esquerda, apoiou a proposta original de Haddad, frustrando expectativas de uma ala do PT de que ela se posicionasse contra um novo teto de gastos.

A posição de Dweck se baseou no fim dos contingenciamentos por frustração de receitas e no mecanismo apelidado de “fator democrático”, que permitia a cada novo governo definir o parâmetro de crescimento do limite de despesas no primeiro ano do mandato.

A ministra entendia que esses pontos eram positivos para a gestão estrutural da regra e defendeu isso a Lula. As duas medidas, porém, foram derrubadas pelo Congresso, que retomou a obrigação de contingenciar recursos e gravou na lei os percentuais de aumento do espaço fiscal.

As conversas com a ala política do governo e com o PT foram as mais difíceis. A presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, foi quem disparou os petardos mais duros contra Haddad. Em reunião do Diretório Nacional, em 10 de abril, ela afirmou que a proposta ameaçava inibir o crescimento econômico.

Os petistas também cobraram participação na discussão com a equipe econômica e criticaram o fato de desconhecerem o teor do projeto, àquela altura ainda não formalizado. A proposta só foi protocolada em 18 de abril.

O clima de tensão no dia da reunião do PT marcou os negociadores porque as declarações de Gleisi foram feitas horas depois de Lula defender Haddad.

O presidente chegou a afirmar que teve o ímpeto de responder publicamente a um artigo duro sobre Haddad, mas foi contido. Era uma referência à entrevista que o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ) deu à Folha de S.Paulo comparando o arcabouço a uma tentativa de pacto demoníaco.

A regra, complicada até no nome, começou a ser chamada jocosamente de “calabouço” nos bastidores.

Na Câmara dos Deputados, o relator Claudio Cajado (PP-BA) recebeu simulações feitas por especialistas de fora do governo que traziam à tona o impacto futuro dos problemas do arcabouço.

Um deles era a falta de visão sobre como as contas da Previdência iriam se comportar ao longo do tempo. Outro eram as hipóteses otimistas de crescimento e juros usadas pelo Executivo para apontar uma trajetória benigna da regra ao longo do tempo.

As simulações de fora do governo, feitas pelo método conhecido como Monte Carlo (que aponta os diversos resultados possíveis e suas probabilidades a partir de múltiplos cenários), mostravam que a dívida pública sobre o PIB explodiria em 80% dos casos.

Cajado disse à Folha não se lembrar das simulações que recebeu e atribuiu os problemas enfrentados hoje não à regra do arcabouço, mas sim ao ímpeto gastador do governo. “É uma sanha. O governo não consegue controlar os seus gastos e isso tem trazido, de fato, um desequilíbrio dentro do conceito do arcabouço.”

Para elaborar seu parecer, o relator disse que recebeu autoridades do governo, especialistas em contas públicas, lideranças partidárias e sindicalistas. Ele também conversou com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.

Cajado precisou impor um freio no diálogo com o Executivo. Ele foi procurado por representantes da Fazenda, do Planejamento e da Casa Civil, cada um com sinalizações diferentes sobre o texto ideal.

“Não dá para ouvir o que a Casa Civil quer, o que a Fazenda quer, o que o Planejamento quer. Então, acordamos que o interlocutor seria o ministro Haddad”, disse.

Informada do teor desta reportagem, a Fazenda disse que a proposta do arcabouço fiscal foi elaborada a partir de “amplos debates técnicos em diferentes secretarias do Ministério da Fazenda”, sob a liderança de Haddad. Depois, a proposta foi levada ao restante da equipe econômica, do governo e ao BC para então obter a aprovação de Lula.

“As negociações no Congresso resultaram em mudanças que enrijeceram a regra, mas o projeto seguiu representando avanço significativo dentro do conjunto de regras fiscais que o país dispõe”, disse a pasta.

A Fazenda afirmou que o arcabouço “garante a sustentabilidade da dívida pública no médio prazo e recuperação do resultado primário”. A pasta reconheceu que os parâmetros aprovados são “desafiadores”, mas afirmou que eles “têm se mostrado factíveis”.

O Planejamento não respondeu até a publicação desse texto.

Voltar ao topo