SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Visualiza você no Reino, plena, andando e dançando com o Senhor”, Pablo Marçal instiga uma cadeirante da plateia. Ela tenta se levantar com ajuda de um assistente do dono do show, mas bambeia, sem conseguir se sustentar sobre as pernas.
A cena aconteceu no Chamado dos Generais do Reino, evento promovido por Marçal em 2021, num auditório goiano. O encontro, segundo seu protagonista, serviu para desbloquear a inteligência emocional dos 16 mil ali presentes, fora outros milhares assistindo online.
Serviu também para colar em sua biografia a imagem da mulher incapaz de dar um passo, até hoje evocada por seus detratores. “Aquele ato me custou no mínimo R$ 10 milhões”, o postulante a prefeito de São Paulo pelo PRTB lamentou no podcast Flow. “Um super herói ora, a pessoa não levanta, acabou o evento.”
Se hoje rechaça o título de coach, dizendo não desempenhar mais essa função, foi por meio dele que Marçal construiu a persona virtual que impulsiona sua candidatura. Adicione notas religiosas nessa oratória motivacional, e está pronta a receita para o que especialistas e pastores vêm chamando de Teologia do Coaching.
Antropólogo com uma tese de doutorado sobre o tema, o luterano Taylor Pedroso de Aguiar aponta como Marçal entrelaça linguagem bíblica e dialeto coach em seu discurso. “Ele não é um pastor nem se coloca como tal. Mas articula a todo momento um repertório cristão.”
O candidato inclusive não se declara evangélico, apesar de frequentemente ser tomado por um. Prefere dizer que, para ele, “cristianismo é lifestyle”. A fórmula orna com a válvula meritocrática que ele aciona para se vender como um “self-made man, alguém que subiu na vida, que venceu através do trabalho”, diz Aguiar. E esfregar sua carteira de trabalho na cara de oponentes faz parte do imaginário que lapida para si.
Antes, quando Marçal conduzia eventos sob slogans como “o pior ano da sua vida” e “sangue, suor, lágrimas e gordura”, a atmosfera muitas vezes lembrava a de um culto. Ao migrar para a atividade eleitoral, ele vai importar elementos desse mix entre religião e coaching.
“Por exemplo, [quando diz] quero servir ao povo de São Paulo, quero honrar as pessoas. Essa ideia de honrar vem do mandamento de honrar o pai e a mãe, aparece em outros momentos na Bíblia”, afirma Aguiar. “E servir vem com toda uma conotação despida do seu sentido religioso, mas não deixa de ser cristã.” É o que o antropólogo chama de cristianismo não religioso.
Marçal também recorre a versículos bíblicos e diz que políticas públicas boas abençoam as pessoas. “Também fala, para assumir uma retórica da perseguição, que agora é ele com um celular, Deus e o povo.”
O teólogo Ranieri Costa, autor de “Teologia Coaching: A Ilusória Ideologia de que Nascemos Só para Vencer”, aponta duas ideias centrais nessa narrativa: “A convicção de que é ou deve ser protagonista e a repulsa pela possibilidade de fracasso, frequentemente demonizado”.
Declarar que “não vai ter segundo turno”, mais do que um cacoete político, “faz parte dessa construção discursiva, na qual o fracasso sequer é considerado uma hipótese, ao menos não publicamente. Ele não precisa necessariamente acreditar nisso, mas precisa convencer seus seguidores, agora eleitores, de que essa é uma realidade.”
Costa especula o que Marçal dirá se vencer a eleição: “Não estou surpreso, porque já tinha determinado isso e dobrado minha energia para vencer”. Mais coach, impossível. Se perder, algo na linha: “O sistema me impediu mais uma vez de desfrutar da vitória que todos sabiam que era minha”. “E assim, mais uma vez, não assumirá o fracasso, pois este jamais é admitido na lógica da teologia do coaching.”
Essa variante teológica é uma espécie de mutação da mais conhecida Teologia da Prosperidade, que há décadas encharca igrejas evangélicas com promessas de fartura em várias áreas, do amor às finanças. A nova linhagem, segundo Taylor de Aguiar, “atualiza a barganha materialista com Deus”, inserindo componentes da psicologia secular e humanista.
Uma mistura que pode causar revertério teológico no segmento. Esse rótulo, Teologia do Coaching, costuma aparecer de forma acusatória sobretudo contra o uso de recursos como neurolinguística e hipnose, que afinariam fronteiras entre religião e coaching. “Eles argumentam que essas técnicas são aplicadas para ludibriar os incautos, e não uma inspiração do Espírito Santo.”
O pastor batista Yago Martins é do time que vê o fenômeno com maus olhos. Coautor de “Você É o Ponto Fraco de Deus e Outras Mentiras da Teologia do Coaching”, ele critica um cristianismo “que oferece, no lugar da transformação espiritual e da comunhão com Cristo, um tipo de bem-estar emocional e prosperidade psicológica”. Muitos fiéis cairiam nessa. Daí a popularização, nos templos, de ferramentas comuns em eventos motivacionais de empresas.
Marçal opera nessa frequência, “em que às vezes é até difícil identificar o que é palestra empresarial e o que é culto”. Não por acaso, diz Martins, “suas incursões como coach acabavam cheias de pregadores religiosos, músicos gospel e até mesmo de momentos de cura pela fé, como quando ele tentou curar uma pessoa aleijada sem sucesso”.
“Até hoje me pergunto por que fiz [aquilo]”, disse Marçal ao Flow. Em seguida, contou que já havia orado para outras pessoas voltarem a andar, também em vão. E ainda: “Já fui no velório para ressuscitar pessoas. Acredito nisso, ainda vou ver isso. O fato de eu ser um fracassado ainda, porque as orações não funcionaram, não invalida que eu não vá conseguir.”
Ele se autodenomina ex-coach ,mas a semente da Teologia do Coaching continua lá.