SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes dono da alcunha de “quarto poder”, o jornalismo agora é só mais um competidor entre tantos outros em um ecossistema dominado pelas big techs mas, se for fiel à sua essência, nunca poderá ser substituído, diz à Folha Jaime Abello Banfi, diretor da Fundação Gabo.
E qual seria essa essência? “Buscar a verdade. Fazê-lo de maneira ética e cuidadosa, independente, baseada em fatos investigados, reportados e verificados. Nenhum dos outros atores da comunicação vai fazer isso”, diz o jornalista.
À frente da mais importante instituição de jornalismo da América Latina desde seu início, há 30 anos, Banfi não ameniza a situação do mercado de comunicação. “Temos um desafio enorme que deve ser abordado com tecnologia, criatividade e inspiração”, diz. “O jornalismo não é fácil, e é mais difícil agora do que há 30 anos. Mas, ao mesmo tempo, as dificuldades o tornam mais belo.”
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*Folha – A Fundação Gabo completa três décadas este ano, e o senhor participou da organização desde o primeiro dia. Como avalia esse percurso?*
*Jaime Abello Banfi -* Em primeiro lugar, ter conseguido mantê-la já é uma conquista, porque as organizações independentes têm um desafio de sustentabilidade econômica. Assim como é complicado sustentar o jornalismo hoje em dia, é igualmente complicado sustentar organizações independentes que o apoiam.
Em segundo lugar, creio que foi muito importante a adaptação e a sensibilidade frente às mudanças do jornalismo. Nós fizemos isso estendendo a ação a outros campos, como o da educação midiática com crianças e jovens. Sabemos que, hoje em dia, o jornalismo já não é a voz privilegiada do ecossistema de informação, mas um competidor. A pergunta é o que o torna diferente dos demais jogadores.
*Folha – O senhor falava sobre a dificuldade de manter uma organização como essa atualmente. Os cortes de Trump na Usaid impactaram de alguma forma a fundação?*
*Jaime Abello Banfi-* Sim. Não tínhamos, por razões inclusive de prudência institucional, grandes projetos com os EUA, mas temos alianças com outras organizações que recebiam fundos dos EUA. Quando ocorreram esses cortes, havia quantias que nos deviam de atividades conjuntas em alguns países, especialmente na América Central, mas que já foram recuperadas.
Agora, todo o financiamento de organizações baseadas na cooperação e na filantropia se desestruturou. A cooperação europeia também está se retraindo um pouco por causa das guerras na Ucrânia e em Gaza e também pela pressão que existe para aumentar os gastos de defesa na Otan [a aliança militar ocidental]. É um momento de grande instabilidade.
*Folha – Gabo gostava de estar próximo de figuras de poder de diferentes espectros ideológicos, como um bom jornalista. Até aqui, a fundação manteve um perfil muito discreto politicamente. Vocês pensam em mudar essa postura em algum momento?*
*Jaime Abello Banfi-* Gabo esteve perto de figuras de poder por curiosidade de jornalista e de escritor, mas também porque figuras de poder o buscaram, bateram à sua porta. Mas, ao mesmo tempo, ele soube manter, como você bem diz, a independência e a dignidade. Ao mesmo tempo em que falava com Fidel [Castro, ditador cubano], fazia o mesmo com [o ex-presidente americano Bill] Clinton ou com presidentes latino-americanos inimigos de Cuba.
Essa dignidade de não converter suas ideias em um panfleto político nos leva a outra coisa: Gabo não deixou que a polarização ou o sectarismo o alinhassem a um lado ou ao outro. Ele sempre foi um homem progressista, de esquerda, mas assim como teve etapas mais radicais nos anos 70 ele fez até uma greve de escrita em protesto ao golpe de Estado no Chile, foi também moderado nos anos 80 e 90. Ele aproveitou sua relação com Cuba, por exemplo, para ajudar centenas de pessoas a saírem da ilha.
A fundação também optou por isso. Temos um compromisso muito claro com a liberdade humana, mas traduzimos esse compromisso em ações de formação, encontro e reflexão. Somos menos de fazer declarações e agitar bandeiras e mais de apoiar.
É um equilíbrio muito inspirado em García Márquez. Somos uma organização que está do lado da liberdade, do humanismo, do jornalismo e do pensamento crítico. Sabemos que o jornalismo hoje em dia é mais um contrapoder do que um poder instituído, mas não precisamos fazer barulho podemos criar espaços coerentes com essa filosofia. Além disso, nos preocupa a polarização política, queremos que a fundação seja uma casa para jornalistas de todas as tendências e posições políticas.
*Folha – Dizia-se que o jornalismo era o quarto Poder, e agora o senhor o apresentou como um contrapoder. Por quê?*
*Jaime Abello Banfi-* Quando começamos, há 30 anos, o jornalismo ainda era um ator de poder nessa dimensão. Não porque fosse sua função, mas porque estava inserido em um sistema de informação em que os meios de comunicação desempenhavam o papel de instituições em nível nacional, local e inclusive multinacional, em diferentes escalas. E para isso havia três fatores: a plataforma de comunicação que os meios ofereciam, a comunicação de massa; o fato de que os veículos eram os produtores e reguladores de informação e de opinião; e o grande negócio da publicidade e das assinaturas.
O cenário mudou: o verdadeiro poder hoje em dia está com as plataformas. Tudo ocorre em um contexto no qual as vozes se multiplicam e criam um enorme ruído digital. E essas vozes às vezes estão a serviço do engano, da manipulação e do controle político.
Eu acredito que o jornalismo cada vez mais deve voltar à sua essência. Sua essência é buscar a verdade. Fazê-lo de maneira ética e cuidadosa, independente, baseada em fatos investigados, reportados e verificados. Nenhum dos outros atores da comunicação vai fazer isso. Se o jornalismo vai à sua essência, é único e insubstituível. Se o jornalismo é um veículo de interesses alheios à cidadania, é claro que pode ser substituído pelas fake news ou o que quer que seja. Mas se está em sua essência, ninguém o substitui. Nem a inteligência artificial, nem os líderes com equipes de comunicação enormes, nem as empresas.
É aí que está essa essência que nos situa não única e exclusivamente, mas normalmente no cenário de contrapoder. De desmascarar, de mostrar aos poderosos, de vigiar, de servir à necessidade de justiça dos cidadãos.
A pergunta para o futuro é: como conseguir consistência nesse exercício jornalístico tão difícil? Segundo: como conseguir relevância? O ruído digital termina muitas vezes encurralando o que é mais sério, mais sereno, mais baseado em investigação.
Então temos um desafio enorme que deve ser abordado com tecnologia, criatividade e inspiração. A tarefa não é fácil, mas não tenho dúvidas de que o jornalismo não vai ser substituído por nada. O jornalismo não é fácil, e é mais difícil agora do que há 30 anos. Mas, ao mesmo tempo, as dificuldades o tornam mais belo. Assim dizia García Márquez: o ofício mais belo do mundo.
*Folha – Gabo dizia que é mais fácil capturar um coelho do que um leitor. E um usuário de redes sociais?*
*Jaime Abello Banfi-* É mais fácil capturar qualquer coisa do que um usuário de redes sociais. A interlocução bem-sucedida com as audiências nas redes sociais requer performance, e muitos jovens estão fazendo isso maravilhosamente, parece que nasceram atores. A pergunta é: como competir com esse manejo das emoções, ou como usar essas características para uma nova maneira de difundir o jornalismo sério baseado em fatos e a interpretação de temas complexos?
*Folha – A que o senhor atribui o sucesso de “Cem Anos de Solidão”?*
*Jaime Abello Banfi-* realismo mágico, mais importante do que a magia é o realismo. No fim, a magia é a nossa crença e o nosso sentimento. Sentimos que estamos lendo magia, mas estamos completamente imersos na realidade. Essa é a alquimia. É um romance que trata da violência, mas o que vemos são as borboletas amarelas. Essa é a sua arte: se inspirar na vida apesar de toda a dor, tragédia e violência que essas histórias informam. Há um segredo mágico aí, e esse segredo provavelmente é o trabalho incansável do escritor. Ou seja, assim como ser repórter o ajudou a reunir as histórias da vida, a imaginação criativa o ajudou a perseguir uma versão após a outra, fazendo pequenas mudanças até que ele alcançasse a magia.
*Jaime Abello Banfi, 67*
Formado em direito pela Pontifícia Universidade Javeriana, Jaime Abello Banfi é diretor e cofundador da Fundação Gabo desde 1995. Antes disso, foi diretor da emissora colombiana Telecaribe de 1990 a 1994. Em outubro, recebeu uma Menção Honrosa do Prêmio Maria Moors Cabot, da Faculdade de Jornalismo da Universidade Columbia (EUA).