SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dono de um estilo expansivo, visto como falastrão por rivais, fã dos Estados Unidos que estudou em Stanford e Harvard, promotor de vacina contra a Covid-19, usuário pesado de redes sociais e nativo de Kiev.
Esse é o resumo improvável do currículo de Kirill Alexandrovitch Dmitriev, o homem que rascunhou com o americano Steve Witkoff o plano de paz de Donald Trump para acabar com a Guerra da Ucrânia.
Ele reuniu-se com o enviado do republicano em Miami no fim de outubro, e na quarta-feira (19) emergiram os primeiros detalhes do plano, que acabou confirmado pela Casa Branca e é amplamente favorável a Vladimir Putin.
No centro de sua confecção está o ambicioso Dmitriev, nascido na Ucrânia soviética em 1975 em uma família de cientistas e dono de passaporte russo. Sua ascensão não é recente, mas o destaque atual já o coloca no centro de intrigas moscovitas.
Segundo uma pessoa que o conhece bem, Dmitriev é visto como um corpo estranho por não ser nem diplomata, nem egresso do aparato de segurança. Economista formado nos EUA, não integra exatamente o grupo de tecnocratas discretos que Putin gosta de ter à mão.
Seus críticos o chamam de vendedor sem substância, mas reconhecem sua obstinação e notam que é um dos poucos membros do governo com conhecimento real de EUA e Ucrânia. Hoje, é odiado na chancelaria de Serguei Lavrov, 75, e já neste sábado (22) circularam informações de que o plano pode estar longe de ser consensual.
O breve sumiço de Lavrov das vistas públicas nas últimas semanas, já sanado, levou a especulações sobre a possibilidade de Dmitriev ocupar seu posto algo que o observador que falou com a Folha descarta, sugerindo pretensões maiores daquele que é chamado de “o americano” pelos detratores.
Sua ligação com os EUA começou em um intercâmbio feito aos 14 anos. Gostou tanto que voltou logo depois, acabando o ensino médio na Califórnia e ingressando no curso de economia da Universidade Stanford.
Depois, fez um MBA em administração em Harvard. Voltou em 2000 à Rússia, onde trabalhou para o banco Goldman Sachs e a consultoria McKinsey, ambos dos EUA. Voltou a Kiev em 2007, onde dirigiu a Icon Private Equity, fundo de US$ 1 bilhão de um oligarca.
Em 2011, foi apresentado a Vladimir Dmitriev, que não é seu parente, que comandava o VEB, uma espécie de BNDES russo. Eles convenceram o Kremlin a lançar o Fundo de Investimento Direto Russo.
Visando atrair investimentos e promover negócios, o órgão foi impactado pela anexação da Crimeia, em 2014. Mas até 2022, o fundo de Dimtriev esteve por trás de cerca de cem projetos, somando US$ 40 bilhões, muitos na Arábia Saudita de seu amigo Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro e governante de facto do país.
“Habitué” de fóruns no Oriente Médio e em Davos (Suíça), o russo ganhou notoriedade mundial em 2020, quando o fundo bancou com o equivalente a R$ 400 milhões a vacina contra Covid Sputnik V. Dmitriev virou mascate do produto e correu o mundo para vendê-lo, com sucesso apenas relativo que ele atribuiu em uma entrevista à Folha ao boicote ocidental.
O Brasil esteve na sua mira e ele associou-se a políticos do centrão para tentar viabilizar a produção local do imunizante, que nunca foi aprovado pela Anvisa. A pandemia arrefeceu e veio o segundo choque na trajetória do fundo, a Guerra da Ucrânia, travando os negócios do fundo devido às sanções.
Sua redescoberta veio das pontes que estabeleceu com a primeira gestão Trump. Dmitriev havia feito contatos com Rick Gerson, um amigo do influente primeiro-genro Jared Kushner. Depois, encontrou-se com Erick Prince, próximo de Trump e fundador da empresa de mercenários Blackwater.
No relatório sobre a suposta ação de Putin no resultado da eleição de 2016 e outros contatos de Trump com o Kremlin, tudo isso foi citado, mas sem apontar malfeito. Dmitriev comemorou no então Twitter.
A presença do economista em redes sociais é pesada. Ele posta muito, quase sempre no inglês que domina perfeitamente, o que o fez virar figura fácil na Fox News, a rede predileta de Trump. Quando acompanhou a cúpula entre Putin e o americano no Alasca, inundou sua conta com fotos de turista acidental.
Nas redes, costuma fazer proselitismo a favor de Putin e também adotar pontos de discussão em comum do presidente russo e de aderentes do Maga, o movimento político de Trump. Críticas à imigração e a leis favorecendo minorias são comuns por lá.
No começo de fevereiro, Dmitriev iniciou contato direto com Witkoff, que numa visita a Moscou conseguiu a libertação de um professor americano detido desde 2021. Ficaram amigos e são interlocutores constantes.
Em 12 de fevereiro, Trump ligou para Putin, efetivamente trazendo o russo de volta ao jogo internacional. Uma semana depois, para surpresa de muitos, Dmitriev estava na comitiva que iria fazer a primeira negociação direta com os russos em quatro anos, em Riad (Arábia Saudita).
O chanceler Lavrov não gostou nada e vetou a presença de Dmitriev à mesa principal. Não parece ter dado certo, pois Putin nomeou o “czar dos investimentos” como também enviado especial para assuntos econômicos.
De lá para cá, Dmitriev passou a anunciar planos mirabolantes para o caso de as relações EUA-Rússia voltarem ao normal, como o “túnel Putin-Trump” ligando o Alasca ao território russo. Sugeriu reatores nucleares para o programa de ida a Marte de Elon Musk.
Autodeclarado apolítico e ao mesmo tempo um putinista de carteirinha, Dmitriev tem outros trunfos na política palaciana russa. Sua mulher, Natalia Popova, é amiga e trabalha na ONG de Katerina Tikhonova, que vem a ser filha mais nova de Putin.
Agora, vive o ápice de sua exposição, surfando o voluntarismo de Trump de tentar acabar com o conflito até quinta (27). O sucesso ou fracasso da empreitada selará sua estatura no Kremlin.