PEQUIM, CHINA (FOLHAPRESS) – Sanae Takaichi, a nova primeira-ministra do Japão e primeira mulher alçada ao cargo, não é novidade no cenário político do país.
Parlamentar desde a década de 1990, a política linha-dura e conservadora defende há anos o aumento do orçamento militar japonês, uma postura mais firme em relação à China e a revisão da interpretação do Artigo 9 da Constituição, que proíbe o país de desenvolver forças armadas ofensivas e de declarar guerra.
Os três pontos são chave para entender a raiz da fala que criou uma das maiores crises diplomáticas em anos entre Pequim e Tóquio.
O estopim da tensão foram as declarações de Takaichi feitas ao responder à pergunta de um parlamentar sobre em quais situações ela poderia acionar a lei que autoriza o premiê a empregar as Forças de Autodefesa do Japão.
Na resposta, ela citou como exemplo uma tentativa do regime chinês de submeter Taiwan ao seu controle por meio da força militar. Isso porque um ataque a navios de guerra americanos envolvidos em romper um eventual bloqueio chinês à ilha poderia obrigar Tóquio a atuar em defesa dos EUA, seu aliado.
Mais tarde, Takaichi reafirmou que deseja manter uma relação construtiva com a China e disse: “o presidente Xi Jinping e eu reafirmamos [em reunião em outubro] a direção geral de avançar de forma abrangente em nossa relação estratégica e mutuamente benéfica”.
Para a China, porém, o envolvimento de outros países na questão de Taiwan viola sua soberania, já que Pequim considera a ilha parte de seu território e trata o tema como um assunto estritamente doméstico.
Não é a primeira vez que Takaichi comenta o assunto. Em 2021, ela afirmou que uma crise envolvendo Taiwan seria uma ameaça imediata aos japoneses e que as chances de o país precisar usar suas forças militares eram altas. No mesmo ano, ela declarou que seria “absolutamente necessário” que os EUA instalassem mísseis de médio alcance no Japão, diante do que classificou de uma crescente ameaça à segurança representada pela China, segundo a imprensa local.
“Nesse sentido, ela acredita que o Japão precisa levar muito mais a sério seus preparativos de defesa e adotar uma definição mais ampla do que são ameaças à sua segurança nacional”, diz o professor Edward Vickers, docente na Universidade de Kyushu (Japão) e pesquisador da relação entre os países.
“As falas dela sobre Taiwan indicam isso que ela vê qualquer movimento agressivo chinês contra Taiwan como uma ameaça séria, até existencial, ao Japão.”
Ainda nos anos 2000, Takaichi começou a dar sinais de ser defensora de uma postura mais dura em relação à China e do revisionismo da história entre os países. Uma edição de 2007 de um jornal ligado ao Partido Comunista Japonês mostra que ela, então deputada federal, defendeu uma visita do premiê da época, Junichiro Koizumi, ao Santuário Yasukuni, que homenageia os soldados japoneses que lutaram na Segunda Guerra Mundial, incluindo criminosos de guerra condenados por violações cometidas na China.
No ano seguinte, como ministra de Shinzo Abe, ela visitou o local, sendo a única integrante da elite do governo a prestar homenagens no santuário, segundo estudo acadêmico Abe esteve no templo antes e depois de seu período como premiê, mas não quando ocupava o cargo.
Vickers afirma que as memórias históricas seguem moldando a relação entre os países, o que ajudaria a explicar a forte reação da China às falas de Takaichi. As visitas ao memorial seriam um dos motivos que alimentam a desconfiança de Pequim em relação à primeira-ministra.
“Em parte por essa razão, os líderes em Pequim sem dúvida a veem com desconfiança e tendem a alertá-la para que não dê vazão a suas inclinações nacionalistas”, afirma o docente.
A defesa de que o Japão se prepare militarmente para ameaças externas se torna mais clara no início da década passada, quando Takaichi apoiou a flexibilização do Artigo 96 da Constituição japonesa, o que tornaria mais fácil uma eventual mudança no Artigo 9.
Escrita principalmente pelos EUA após a derrota do Império Japonês na Segunda Guerra Mundial, a Carta diz nesse artigo que “o povo japonês renuncia, para sempre, à guerra como direito da nação e à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais”.
Hoje, a primeira-ministra e a ala conservadora da política japonesa defendem não uma alteração formal da Constituição, mas a revisão da interpretação do artigo para ampliar a capacidade do país de responder a ameaças militares.
Uma reinterpretação durante o governo Abe permitiu, em 2014, que o Japão usasse força militar para defender aliados próximos de ataques, e uma legislação de segurança aprovada no ano seguinte criou o mecanismo para operacionalizar a mudança, permitindo que o premiê seja responsável por acionar as forças de defesa em cenários do tipo base legal da fala de Takaichi que desencadeou a crise mais recente entre Japão e China.
A política também é influenciada pela trajetória de Abe, que foi favorável a equiparar as capacidades de defesa do Japão às de outros países, o que incluiria o desenvolvimento de armamentos ofensivos. Uma das promessas de governo da primeira-ministra é o aumento do orçamento militar.
Para Vickers, Takaichi acerta ao ver uma intervenção chinesa em Taiwan como uma grave ameaça à segurança nacional do Japão. “Onde ela erra é em combinar sua linha dura em defesa nacional com negacionismo e obscurantismo em relação à história da agressão imperialista do Japão contra a China e outros vizinhos asiáticos. É a combinação de uma postura belicista compreensível, até necessária com o revisionismo histórico nacionalista que é realmente tóxica e perigosa”, diz.
Durante o período em que ocupou a China, as forças imperiais do Japão mataram pelo menos 10 milhões de chineses, segundo estimativas de historiadores, e cometeram uma série de graves violações de direitos humanos.