A aproximação do final do ano é sempre uma espécie de momento da verdade. As metas, seja no lado profissional, seja no lado pessoal, veem seus prazos esgotados, há pouca coisa a se fazer. Geralmente é um bom momento para uma parada, ainda que quase tudo fique lotado e requeira muita paciência, planejamento e recursos.
Se não encontrar espaço para pensar na vida agora, sinto afirmar que corre um sério risco de complicar as coisas. Sugiro ouvir um clássico da dupla Vinicius e Toquinho. Digite Como dizia o poeta no seu tocador e ouça com atenção a primeira vez, não se contagie e solte a voz de cara. Faça isso na segunda passada: Quem já passou por essa vida e não viveu, Pode ser mais mas sabe menos do que eu, Porque a vida só se dá para quem se deu, Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu. Se está sentado ainda, hora de refazer a escuta, agora em pé e com a voz, o corpo e os braços soltos. A vida só se dá para quem se deu!
Numa festa falando com um CEO de uma multinacional, ele, em tom meio brincalhão, meio sério, disse que não era dado a terapias, que fez uma sessão e foi suficiente, já tinha entendido como tudo funciona e não era algo que pudesse acrescentar à vida dele. Com uma amiga discutia a questão do vazio e a função da análise em nos ajudar a reconhecer esse vazio e incluí-lo no dia a dia de uma maneira o mais saudável possível. Ela também disse sentir falta de objetividade no processo.
Não cobre nem espere da psicanálise objetividade. Ela é o oposto disso, trata da subjetividade, psicanálise é uma escuta individual, é conseguir fazer com que a pessoa se escute, se procure e talvez se encontre, tente superar as barreiras de defesa que se viu obrigada a criar para dar conta dos fatos que a vida apresentou, entenda ou se aproxime de entender sua relação com os outros, se preocupe com seu desejo, da forma que é, é acreditar que o inconsciente existe. Talvez esse personagem seja vulnerável demais para o mundo corporativo.
Empresas preferem pensar em grupos, em padronização, em escala, solução definitiva, em certo e errado, sempre na busca de uma melhora de performance ou numa performance correta. Eu tendo passado a maior parte da minha vida nesse universo concordo que seria muito melhor que isso tudo fosse possível. Adoraria acreditar nos coachings e nas fórmulas mágicas e mantras, admito que são muito mais rápidos e fáceis, mas se antes de mergulhar na psicanálise já tinha meu pé atrás contra os coachings, depois então ficou impossível.
Então como a psicanálise pode te ajudar ou a ajudar sua empresa nessa revisão de final de ano? Trabalhando você e cada membro da equipe, sem falsas promessas, sem prazo definitivo, sem focar na meta da empresa, somente no desejo da pessoa, na relação dela com ela mesma, não importando se o resultado será uma promoção ou um pedido de demissão, mas apostando que pessoas mais alinhadas com o que vem de dentro e com coragem de assumir isso também pode trabalhar melhor e serem pessoas mais interessantes, criativas e destemidas.
Voltando ao poeta: Abra os teus braços, meu irmão deixa cair, Pra que somar se a gente pode dividir, Eu francamente já não quero nem saber, De quem não vai porque tem medo de sofrer. Esse foi o ano de Odete Roitman e o lado menos nobre do mundo empreendedor e empresarial, uma líder perversa e os estragos que produz. O recente episódio da liquidação de um banco que prometia o impossível e ainda assim seguiu replicando o modelo por tanto tempo está repleto de episódios no mínimo questionáveis sobre os envolvidos e seus objetivos. Ah, a dimensão humana. Ah, a ambição. De fato vale tudo?
O convite é que nessa parada de final de ano você reflita sobre seus desejos, sobre o que os seus sintomas podem querer dizer e sobre a sua singularidade. Se fizer algum sentido, que tal se dispor a criar um espaço para si mesmo, reservando um horário, estabelecendo uma relação com um analista, sem esperar dele as respostas, as fórmulas, o que fazer, mas apenas com a expectativa que ao usar as técnicas iniciadas por Freud, ele consiga te ajudar a descobrir mais sobre você. Esse é um ponto bastante interessante, parece que Freud iniciava uma análise com a pergunta: Me conte o que você já sabe sobre você.
Mas antes de parar, é chegado o momento do tal amigo secreto. Hoje existe até aplicativo para isso, ficaram para trás as caixas com os papeizinhos dobrados. Não sei se ficou mais fácil ou mais difícil tentar a troca. Porque às vezes dá aquela sensação de conspiração. Tirar o chefe direto é quase sempre constrangedor, e aquela pessoa com quem você passou o ano se estranhando ou tem diferenças insuperáveis e precisa encontrar as palavras que ajudem os outros a adivinhar, mas não pode ser sincero. De repente você pode pedir a ajuda do ChatGPT para preparar essa breve fala. Para isso pode, para fazer terapia, não recomendo, análise, é impossível.
A convocação é que você deve focar em você nessa virada de ano, em casa e no trabalho as pessoas agradecerão ou deixarão de conviver com você. Você é quem não pode fazer o mesmo, mas aposto que consegue fazer uma rápida lista dos anestesiados, aqueles que precisam acreditar que arrasam fugindo da própria essência. Se não ouvir os outros é perigoso, não ouvir a si mesmo é mais ainda.
Lacan insistia “Não ceda quanto ao seu desejo!”. Isso estava relacionado a não viver pela expectativa do Outro, a não se trair, ser fiel a si mesmo, ao que se quer, mas é claro que o mesmo Lacan também adverte: “O desejo é o desejo do Outro”. Ou seja, se não se questionar o que em você é seu, ou o que do seu desejo é seu e de quem é o desejo que você realiza, fica tudo mais complicado.
Se você é como o meu amigo CEO que não precisa de terapia, muito menos de análise, um bom 2026 para você, ainda que eu duvide que vai conseguir tirar dele tudo o que pode. Quem não rasga o coração, não será perdoado, grande Vinícius!
MARCELO CANDIDO DE MELO
Escritor e psicanalista, é graduado e pós-graduado em administração pela EAESP-SP da FGV. Atuou na área de marketing de grandes empresas nacionais e multinacionais antes de empreender no mercado editorial. Sua editora alcançou bastante sucesso e foi adquirida por uma multinacional. Já escreveu 18 livros em seu nome ou como ghost-writer. Dá atenção especial à produção ficcional. Também já fez roteiro de documentário. Nos últimos anos mergulhou numa formação em psicanálise e desenvolve atividade clínica.