O brasilianista e economista Werner Baer inicia o capítulo que discorre sobre a implantação do Plano Real, em seu importante livro Brazilian Economy – Growth and Development, afirmando que um problema endêmico do governo brasileiro era sua inabilidade de decidir explicitamente sobre qual grupo socioeconômico iria suportar o peso do financiamento dos programas governamentais e da busca por estabilização fiscal.
As palavras de Baer ecoam vividamente em 2025. Do importante marco institucional que foi a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, 25 anos se passaram. E se, ao longo da primeira década pós-implementação da lei, vivemos um período de grande pujança econômica, em função do grande boom de nossas commodities, com uma política econômica relativamente tranquila – até mais ou menos 2012 –, o choque externo inundava o país com um adicional de renda considerável que, fluindo naturalmente aos cofres públicos via impostos, oferecia a possibilidade de maiores gastos públicos nos diferentes entes federativos (União, estados e municípios). E ainda assim possibilitava um superávit primário que ficou, na média, em 3% do PIB, naqueles 12 primeiros anos do século.
O título de nosso artigo se utiliza de uma palavra, conceito proposto pelo importante filósofo Karl Popper, que busca mostrar que importantes forças sociais, econômicas e políticas se movimentam, ‘subterraneamente’ sem muitas vezes serem notadas até sua eclosão à ‘superfície’, aquilo que chamou de propensões. Nesse sentido, o choque externo deveras positivo para a sociedade brasileira, como foi aquele das commodities, se mostrou efêmero em razão, boa parte, de um primeiro soluço da solidez do sistema financeiro norte-americano, aquele de 2008 – gestado nas desregulamentações financeiras das décadas de 80 e 90. Uma propensão pouco percebida, com os desdobramentos que não nos cabe aqui delinear. O segundo soluço norte-americano ocorre agora, em 2025, mas não é tema deste artigo.
O fim do boom eliminou o superávit primário a partir de meados de 2014. Com o seu fim, veio a interrupção da trajetória de queda de dívida líquida na casa dos 30% do PIB – metade daquela de hoje –, e outra propensão socioeconômica tomava volume: a transformação demográfica brasileira e seus enormes impactos sobre as contas da Previdência Social. Pode-se dizer, portanto, que a partir de 2015, a situação fiscal brasileira muda completamente de figura e a solvência intertemporal da dívida volta ao centro das discussões. Dada ao grande momento de incerteza, só em 2015 os gastos com juros pularam da casa de 5% do PIB para quase 9%!
A Emenda Constitucional 95, de 2016, a Lei do Teto dos Gastos, que buscava endereçar essa nova situação fiscal, ação importante, e que deveria perdurar pelos próximos 20 anos, foi incapaz de fazer frente à evolução das contas públicas. Isso obrigou, já em 2023, a edição do Novo Arcabouço Fiscal, PLP 93/2023, que como estamos percebendo deverá se inviabilizar totalmente já a partir de 2027. Vale ressaltar, entretanto, que no meio do caminho tinha uma pandemia.
Voltamos a Werner Baer e a incapacidade do setor público em fazer frente aos desequilíbrios fiscais da atualidade e endereçar tal problema de forma definitiva. Definitiva talvez seja uma palavra ilusória. Estrutural cabe melhor ao nosso propósito. Em seu último Relatório de Acompanhamento Fiscal, do dia 23 de maio passado, o Instituto Fiscal Independente (IFI) mostra a disparidade entre o resultado primário ‘convencional’ contra aquele estrutural, aquele que não contabiliza os eventos não-recorrentes. Em 2023, o déficit primário convencional foi de 2,4% contra 1,4% daquele calculado como estrutural, segundo o IFI. Em 2024, os resultados foram, respectivamente, de 0,4% e 1,7%. Em outras palavras, estaríamos falando de R$ 200 bilhões de déficit estrutural em 2024.
Nos últimos meses temos visto, o esforço do governo federal em buscar atingir o piso de 0,25% de déficit primário em 2025, em grande parte de forma atabalhoada, vazando uma notícia de contenção de gastos para só, então, anunciar uma nova rodada de elevação de tributos. O caso IOF é mesmo emblemático. Do almoço de terça-feira, 3 de junho, entre Lula, Haddad, Alcolumbre e Motta, mais uma rodada na busca do elixir fiscal. Agora com ingredientes de revisão de incentivos fiscais, contenção de gastos com BPC e retirada de pisos de educação e saúde, tudo isso por meio de mudança constitucional.
Não parece mesmo factível haver discussões mais estruturantes no quesito fiscal até o fim deste mandato de Lula. Caminharemos aos trancos e barrancos na busca por atender aos pisos de 0,25% de déficit primário, neste e no próximo ano. Para concluir com uma boa notícia: em 2026 inicia-se o processo de transição para a nova estrutura tributária sobre o consumo, que se concluirá em 2033, com a implementação definitiva do novo imposto sobre valor agregado dual, com o IBS e a CBS. Será um grande aprimoramento econômico, tema de uma futura coluna.
RICARDO MEIRELLES DE FARIA
Professor de macroeconomia e economia monetária da EAESP-FGV, editor do relatório Tendências do Varejo do FGVcev (Centro de Excelência do Varejo) e economista da Linus Galena Consultoria Econômica.