Negociação do tarifaço precisa ocorrer fora do campo político, diz ex-assessor de Obama

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Crédito: Bruno Peres/Agência Brasil

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Ex-conselheiro do governo Barack Obama, Ricardo Zúñiga disse à Folha de S.Paulo que uma eventual negociação para o tarifaço imposto por Donald Trump contra o Brasil precisa ocorrer fora do campo político.

“Se for para haver algum tipo de resultado positivo ou negociado, isso realmente terá que acontecer no âmbito comercial”, afirma Zúñiga, hoje sócio-fundador da consultoria Dinámica Americas.

Exigências feitas pelo americano, como anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o fim dos processos de regulação contra as big techs, estão hoje fora de questão -ou de alcance- para a gestão Lula.

Ex-diplomata americano com duas passagens pelo Brasil, uma delas como cônsul-geral em São Paulo, Zúñiga argumenta que desde o início estava claro que a gestão Trump não tinha interesse em manter um relacionamento “normal” com Lula.

“Não se pode culpar o governo brasileiro pela falta de comunicação entre os dois governos. Isso não foi uma decisão do lado brasileiro”, afirma.

PERGUNTA – Ficou surpreso com o anúncio das tarifas contra o Brasil?

RICARDO ZÚÑIGA – Eu não fiquei surpreso com as tarifas. Nossa consultoria vinha prevendo que a cúpula do Brics poderia ser um episódio em que a atenção, que não estava muito focada no Brasil, se tornaria muito focada. Víamos sinais do Departamento de Estado e da Casa Branca de que eles pretendiam apoiar totalmente as empresas de tecnologia contra o Supremo Tribunal Federal, contra [o ministro Alexandre de] Moraes em particular. Sabíamos que Eduardo Bolsonaro estava trabalhando na tentativa de conseguir apoio na administração Trump para agir contra o governo do Brasil em relação à situação legal de Jair Bolsonaro. O que eu não esperava era 50% [de sobretaxa].

P. – A carta de Trump a Lula cita a situação de Bolsonaro, regulação das big techs e um suposto déficit dos EUA com o Brasil, que não existe. Qual foi o principal fator que motivou as tarifas?

RZ – A administração Trump realmente não queria ter um relacionamento com o governo Lula. Estava muito claro desde o início que eles não pretendiam ter um relacionamento normal. Na verdade, fiquei um pouco surpreso que o Brasil tenha ficado na categoria de tarifa de 10% no dia em que as anunciaram globalmente [em abril].

É verdade que o Brasil tem tarifas externas significativas e tem com os Estados Unidos algumas disputas comerciais muito reais. Mas elas têm sido litigadas por décadas. Esse foi verdadeiramente um sinal político, não comercial. Há elementos comerciais [na carta], mas é a única carta de que tenho conhecimento, além da questão do fentanil na América do Norte, que não é de natureza relacionada ao comércio. Portanto, não é uma carta focada no comércio. É uma amálgama de diferentes queixas que a administração Trump tem com o governo Lula.

P. – Trump já adiou a imposição de tarifas anunciadas contra outros países. O mesmo pode ocorrer com o Brasil?

RZ – Nos outros casos, há geralmente algum ator econômico que contata alguém na administração, o Departamento de Comércio, o USTR [representante de comércio] ou o Departamento do Tesouro, para apontar o dano que será causado a algum setor que importa para os EUA se as tarifas avançarem. Geralmente envolve uma empresa americana e é aí que a negociação ocorre, em torno de interesses mais definidos.

Isso é um pouco diferente. Eu acho que, comparado à América do Norte ou Europa, os dois países têm menos a perder nessa guerra comercial. Porque é muito político. Será difícil se afastar do contexto político. Mas acho que seria benéfico para ambos os países se isso acontecesse e se o foco fosse em questões concretas que existem no lado comercial.

P. – Vê algum ator econômico relevante que poderia desempenhar esse papel?

RZ – É difícil detectar alguém que seja extremamente poderoso e que vá bater à porta em favor da manutenção do relacionamento [dos EUA com o Brasil]. São justamente as empresas de tecnologia que estão pressionando por ações contra o governo brasileiro e que estão entre as mais expostas e vulneráveis no Brasil. Elas estão dispostas a tentar usar o máximo de influência possível -a menos, é claro, que a própria existência delas no Brasil seja colocada em risco, porque é um mercado crucial para elas.

Outros setores que vão se importar: a aviação dos EUA, obviamente. A Boeing vende para o Brasil e não quer ver um colapso completo no relacionamento. Certamente é preciso considerar a agricultura, especialmente as empresas ligadas à tecnologia, como a Cargill. Elas exportam etanol, milho, trigo, ração animal, tudo isso é importante.

Equipamentos médicos e a indústria farmacêutica também são muito importantes. Aí estamos falando de empresas como a Pfizer e outras gigantes realmente importantes, que vão ter que pensar, caso haja uma retaliação brasileira, se isso poderia afetá-las.

P. – Pela carta de Trump, vê alguma janela para negociação exclusivamente comercial?

RZ – O peso está fortemente no componente político, no lado americano. O setor de tecnologia é obviamente importante, mas difícil para o governo brasileiro negociar porque há um processo judicial envolvido. A política importa muito. Isso não significa que não haja espaço para negociação, nem que o governo brasileiro não possa mover a discussão para o espaço comercial.

Acho que há algumas coisas que beneficiam o Brasil. Uma delas é que o governo brasileiro está muito acostumado e confortável com conflitos comerciais. Isso já é algo para o qual estão preparados e habituados.

Outra razão é que não haverá uma solução política. Então, se for para haver algum tipo de resultado positivo ou negociado, isso realmente terá que acontecer no âmbito comercial. Essa é outra razão para transferir o foco. Agora, pode ser que as partes acreditem que o valor político desse conflito favoreça ambas. Em outras palavras, que cada lado acredite que está se beneficiando politicamente com o conflito.

P. – Há argumentos para que as tarifas sejam questionadas na Justiça dos EUA?

RZ – Primeiro, este não é um governo que se incomoda muito com decisões judiciais e não se sente particularmente obrigado a cumpri-las. No fim das contas, ele frequentemente acaba acatando, mas só depois que a ação já teve o efeito desejado para o governo. A conformidade com a lei não é algo tão importante, especialmente quando há objetivos políticos envolvidos.

O segundo ponto é que, se o componente político da carta não estiver em conformidade com as autoridades comerciais do presidente, outras partes estão. Certamente se pode argumentar que o presidente não tinha autoridade para impor sanções com base nesse argumento [político], mas há outros elementos naquela carta que têm uma base jurídica mais sólida. Portanto, eu não acreditaria que um tribunal fosse simplesmente anular toda a ordem.

P. – Quais seriam as consequências econômicas mais imediatas de uma guerra comercial entre EUA e Brasil?

RZ – Combustível de aviação, por exemplo. Se isso for incluído de alguma forma, os preços das passagens vão disparar. Se for mais caro adquirir combustível de aviação para voos de e para o Brasil, esse item é sensível. Pelo menos no início, [uma guerra comercial] prejudicaria o real, o valor da moeda cairia. Isso tem várias implicações para os consumidores brasileiros.

Acho interessante que, até agora, as economias de países grandes conseguiram absorver esses custos relativamente bem. No caso do Brasil, isso pode gerar uma pressão inflacionária significativa se a situação avançar. Isso é muito mais sério do que o aumento no preço de um produto específico vindo dos EUA, caso as tarifas sejam aplicadas de forma recíproca.

P. – O Brasil é uma economia menos exposta aos EUA do que México e Canadá. Isso coloca o país numa situação menos vulnerável?

RZ – O Brasil não é tão exposto [aos Estados Unidos] quanto México, Canadá ou alguns países europeus -ou ainda Japão e Coreia, que são muito mais focados em exportações para os EUA. Mas o Brasil ainda mantém uma relação comercial significativa [com os EUA]. Os EUA continuam sendo o maior mercado para produtos manufaturados brasileiros. Principalmente a Embraer, mas não apenas ela.

Os EUA ainda são um grande investidor no Brasil e um parceiro comercial importante, especialmente em setores como produtos químicos e outros materiais industriais. Não é algo irrelevante.

Você poderia ver, sim, alguma possível disrupção nas cadeias de suprimento, especialmente nos setores aeroespacial e de máquinas. Não sei exatamente qual seria o sentimento dos investidores nesse caso, mas não acho que o impacto no Brasil seria tão grande quanto em outros países. Ainda assim, poderia haver alguma redução no crescimento do PIB -mas provavelmente menos de um ponto percentual, mesmo no pior cenário para o Brasil.

P. – Na sua opinião, qual foi a influência do trabalho de Eduardo Bolsonaro para convencer os americanos a tomarem essa decisão?

RZ – Não foi preciso muito incentivo para a administração dos EUA. Já existia um ceticismo em relação ao atual governo brasileiro dentro da gestão Trump. Há relações antigas entre Bolsonaro e o círculo mais próximo a Trump, e eles veem paralelos entre os dois. Acho que isso foi um fator, mas a carta é uma combinação de diferentes componentes. Eu diria que o setor de tecnologia dos EUA teve mais importância em termos de gerar a animosidade inicial entre os que cercam Trump e ativá-los nesse assunto. Isso foi mais relevante.

A razão de retratarem isso como uma questão de liberdade de expressão é porque eles estão travando a mesma batalha nos EUA. Eles não querem restrições à desinformação -precisam disso, é um instrumento para eles. Então não dá para dizer que uma única pessoa foi responsável por isso.

P. – A falta de interlocução entre os governos Lula e Trump prejudicou a situação do Brasil?

RZ – Pelo contrário, a falta de contato entre o Planalto e a Casa Branca impediu que o Brasil estivesse entre os primeiros alvos de medidas tarifárias. O fato de o Brasil não estar no radar dessa equipe ajudou o país a evitar esse tipo de tarifa no início da relação. Houve esforços do Brasil de contatar a equipe de Trump, que não foram respondidos.

Não se pode culpar o governo brasileiro pela falta de comunicação entre os dois governos. Isso não foi uma decisão do lado brasileiro.

P. – Como vê a situação evoluir daqui para frente?

RZ – Acho que as partes interessadas vão se envolver muito mais. Me refiro às grandes empresas privadas de ambos os lados, além de outros que possam ser afetados, como governos locais. É muito raro que um anúncio de tarifas seja implementado exatamente da forma como inicialmente é apresentado pela Casa Branca. Então, acredito que haverá alguma modificação.

Minha aposta é que, uma vez que aqueles que possam ser impactados tenham a chance de se manifestar, isso vai fazer diferença. Muito disso depende da capacidade de deslocar o foco para o território de disputas comerciais -algo familiar para ambos os países- em vez de permanecer no campo das disputas políticas internas.

RAIO-X

Ricardo Zúñiga, 55

Foi responsável pela América Latina no Conselho de Segurança Nacional dos EUA de 2012 a 2015, na gestão Barack Obama. Diplomata de carreira do Departamento de Estado por 30 anos, ocupou os cargos de vice-secretário de Estado para Hemisfério Ocidental e foi cônsul-geral em São Paulo de 2015 a 2018. É sócio-fundador da consultoria Dinámica Americas. Nascido em Honduras, é formado em Assuntos Latino-Americanos e Relações Internacionais pela Universidade da Virgínia (EUA).

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