SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ler pela primeira vez “Um mundo sem pobreza”, do economista e ganhador do Nobel da Paz Muhammad Yunus, levou às lágrimas Ticiana Rolim Queiroz, 43. A cearense sentiu que o autor, conhecido como “banqueiro dos pobres”, verbalizava um anseio que ela mesma carregava: tornar a pobreza peça de museu.
Sensibilizada pela ideia, Ticiana decidiu ampliar seu engajamento em causas sociais para além de doações esporádicas e voluntariado, que praticava desde a infância, fundando em 2017 a Somos Um, organização articuladora de negócios de impacto no Nordeste.
“Decidi que não iria mais acumular riqueza. Parei de trabalhar na empresa da família e foquei na Somos Um de forma voluntária, doando meu serviço e tempo”, diz ela, que também é a mente por trás do Zunne, programa de investimento em parceria com a Yunus Social Business e a Trê Investindo com Causa.
A herdeira do grupo C. Rolim Engenharia optou ainda por retirar investimentos de empresas como Vale e Petrobras para aplicá-los em negócios de impacto focados em energia limpa, reflorestamento e outras causas socioambientais.
Hoje, Ticiana defende uma filantropia estratégica, que busque soluções estruturantes para problemas sociais no Brasil, em vez de ações puramente assistenciais. Sua família quer guiar pelo exemplo e, para isso, estuda criar um instituto para investimentos sociais.
Incentivar mais famílias detentoras de grandes patrimônios a doar é desafio no país, como revelou mapeamento do Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social) divulgado no final de junho.
Analisando dados do último censo realizado pelo Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), a publicação conclui que a filantropia familiar no Brasil não avança na mesma velocidade observada em outros países, tampouco acompanha o ritmo de crescimento das fortunas.
Em 2022, institutos e fundações familiares associados ao grupo investiram R$ 388 milhões, o que equivale a apenas 8% do total (R$ 4,8 bilhões) de doações mapeadas pela pesquisa que analisa características do investimento social privado no Brasil -o menor valor em quatro anos.
Em contrapartida, o número de bilionários chegou a 69 em 2024, alta de 13% em relação a 2023, quando eram 61, conforme divulgou a Forbes. Juntos, eles detêm US$ 230,9 bilhões (aproximadamente R$ 1,16 trilhão).
Já os milionários somavam 433 mil pessoas com patrimônio acima de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,5 milhões) no mesmo ano. Com isso, o país alcançou a 19ª posição entre 56 nações no ranking global de milionários, segundo o Global Wealth Report do banco suíço UBS.
Para investigar o panorama nacional da filantropia familiar, o Idis entrevistou especialistas no assunto e conduziu um levantamento que teve a participação de 35 filantropos com doações anuais acima de R$ 5 milhões.
Um dos principais obstáculos identificados foi a desconfiança em relação às organizações da sociedade civil, associada à percepção de falta de capacidade de gestão e dificuldade de gerar impacto social de forma eficiente, motivos mencionados por 20% dos respondentes.
Além disso, 17% apontaram como barreira relevante a ausência de incentivos fiscais adequados para doações de pessoas físicas, enquanto 3% citaram a falta de conhecimento sobre causas e instituições a serem apoiadas.
“Ainda existem diversas questões que desestimulam os doadores. Embora as leis de incentivo sejam muito benéficas, permitindo a doação de parte do imposto, elas são burocráticas e difíceis de utilizar”, afirma Paula Fabiani, CEO do Idis. “Isso cria um cenário que desestimula as doações, em vez de impulsionar a filantropia.”
A publicação destaca ainda que muitos doadores preferem manter discrição sobre seus aportes, motivados, entre outros fatores, por preocupações com segurança pessoal e patrimonial.
Esse comportamento é mais comum na América Latina, como revelou o estudo Family Barometer 2024, não sendo observado em outras regiões considerada nessa pesquisa, que incluiu Europa, Ásia e Oriente Médio.
Educação é a causa que lidera doações familiares no Brasil, mas temas como meio ambiente e sustentabilidade, mencionados por 26% dos entrevistados, têm conquistado espaço.
Conflitos geracionais foram outra dimensão abordada no levantamento. Enquanto os mais jovens demonstram disposição para a inovação e atenção a pautas contemporâneas, os mais velhos tendem a prezar por prudência e controle, sobretudo devido a receios relacionados à segurança jurídica e à reputação familiar.
Para contornar essas divergências, muitas famílias com práticas filantrópicas mais estruturadas estão criando conselhos com representantes de diferentes gerações.
“Quando olhamos para gerações mais jovens, especialmente para as mulheres, notamos que a forma de olhar para o dinheiro é diferente, muito mais inclusiva e colaborativa”, avalia a empreendedora social Ticiana Rolim.
O Idis propõe caminhos para ampliar e qualificar a filantropia familiar no país, incluindo a sensibilização de novos doadores e da próxima geração de filantropos, criação de espaços de troca entre pares, capacitação de conselheiros e ampliação da discussão pública sobre o papel das famílias ricas.
Outras medidas passam por fortalecer a governança das organizações, melhorar o ambiente regulatório e fiscal para doações, diversificar instrumentos financeiros usados por filantropos, fomentar o advocacy e criar coalizões intersetoriais que gerem impacto em escala.