Lucano, o vinho paulistano 'escondido' num negócio de família há quase 40 anos na Zona Leste

Uma image de notas de 20 reais
Família de Rocco chegou ao Brasil em 1960. No começo, o vinho era apenas para lembrar de casa
(Andre Lessa/Agência DC News)
  • Os Lence chegaram ao Brasil em 1960. O que era apenas atividade para reuniões caseiras virou um negócio familiar. São 15 mil litros por ano
  • Rocco Lence, que chegou ao Brasil aos 12 anos com pais e irmãos, cuida da produção de vinhos e licores. E promove degustação aos sábados
Por Vitor Nuzzi

[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS]
Rocco e seus irmãos, Giovanni e Dina, chegaram ao Brasil em 1960, com os pais, Leonardo e Angela, vindos do sul da Itália. O patriarca queria distância das guerras – que ele enfrentara como soldado. A primeira parada foi em Campinas, a 100 quilômetros da capital paulista, mas durou pouco tempo. “Praticamente não tinha emprego”, disse Rocco Lence. Mas um “patrício”, como ele diz, morava em Penha de França, Zona Leste paulistana, e a família seguiu para lá. Leonardo alugou uma casa e foi trabalhar em uma fábrica de galochas no Tatuapé. Até que em 1967, a família conseguiu comprar uma casa ampla na rua Mirandinha. Período de dificuldades. Tempos “brabos”, segundo Rocco. “O dinheiro que meu pai recebia era para pagar prestação da casa.” Antônia, uma vizinha que os Lence consideravam uma irmã, trazia aventais para dona Angela costurar. Rocco arrumou emprego em uma fábrica de bijuterias. E a família foi se mantendo.

Mas faltava alguma coisa. A mesa e os encontros regados a vinho. O quintal era espaçoso, e o patriarca começou a cultivar. “Conseguiu plantar 80 pés de uva.” Muito tempo depois, o que era uma atividade prazerosa, para consumo próprio e confraternizar, viraria o negócio da família. Criada em 1987, a Vinícola Lucano está no mesmo local que abrigou a família Lence, uma rua sossegada da Penha, perto do córrego Gamelinha e a dois quilômetros da matriz de Nossa Senhora da Penha, padroeira da cidade. É a casa onde Rocco produz e comercializa 11 tipos de vinho, mais cachaças e licores. Ali fica uma adega com capacidade para 60 mil garrafas, com uma placa em madeira envelhecida na entrada: Silenzio – Vino in Riposo. Rocco Lence, 77 anos, foi um dos premiados deste ano pelo Dia do Comerciante, escolhido pela Distrital Penha da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Da rua, apesar da placa com o nome da empresa – e de uma parreira –, é difícil imaginar que uma vinícola funciona lá dentro. Mas funciona. Não parece à primeira vista, mas o espaço é amplo. Ao entrar, o visitante já está na loja – prateleiras com vinhos, licores (quatro sabores), cachaça (a Lucana), grappa, vinagre (de vinho e balsâmico). A grappa não é de fabricação própria – vem da região Sul. Mas um visitante mais sequioso pela aguardente italiana pode, talvez, ser levado até um minúsculo porão, em que é preciso abaixar-se para passar, e naquele reduto – o primeiro local onde Leonardo Lence produziu seus vinhos – encontrar um pequeno tonel onde repousa uma grappa envelhecida. É quase um esconderijo da casa, que tem várias passagens até o quintal, onde fica uma máquina esterilizadora de garrafas e um taquaral (“Dos anos 30”).

Escolhas do Editor
Rocco Lence: “Vinho não é bebida. É alimento. E tem alma”
(Andre Lessa/Agência DC News)

O mesmo quintal onde, lá atrás, mamma Angela amassou as uvas (as de casa e outras compradas no mercado) e deixou o produto para fermentar em dois tanques (de 500 litros cada), engarrafou e serviu para a família e para os amigos. Era uma forma de se sentir novamente em casa. A família veio da região da Lucânia – daí o nome da vinícola –, hoje Basilicata, no sul da Itália. Rocco nasceu em Ferrandina, cidade com menos de 10 mil habitantes, na província (equivalente a um estado) de Matera, a 30 quilômetros de distância. Onde, lembra o dono da vinícola, foi filmado o longa A Paixão de Cristo (2004), dirigido por Mel Gibson. Em 1993, as habitações esculpidas em pedra na cidade de Matera foram declaradas Patrimônio Mundial pela Unesco.

Rocco tinha 12 anos quando os pais se mudaram para o Brasil. Era o filho do meio. Giovanni tinha 14 e Dina, apenas 4. No mesmo ano (1960) em que a família se mudou, Lucchino Visconti filmava um futuro clássico do cinema italiano. Chamava-se Rocco i Suoi Fratelli (Rocco e Seus Irmãos). Contava, de forma dramática, a história de uma família que saía justamente da região da Lucânia rumo a Milão. Rocco Parondi era o personagem de Alain Delon. Aqui no Brasil, a família Lence, depois dos primeiros anos “brabos”, foi se ajeitando. Os três filhos de Leonardo e Angela foram trabalhar no grupo Matarazzo – Rocco era técnico de tecelagem. Mais tarde, os irmãos iriam cuidar da vinícola. Giovanni faleceu em 2009 e Dina voltou para a Itália – mora em Roma. Rocco não visita seu país natal desde 2018. Primeiro veio a pandemia, e depois sua mulher, a pesquisadora e professora aposentada Guaraciaba Micheletti, adoeceu, exigindo cuidados constantes. A companheira de mais três décadas morreu em fevereiro do ano passado, aos 75 anos. Eles haviam se conhecido em São José do Rio Preto. Ambos foram professores. Rocco dava aulas de Física. Lecionou de 1972 a 2006, em escolas públicas (estaduais) e privadas, e também se aposentou.

Produção da Lucano envelhece em dezenas de tonéis de aço e de carvalho
(Andre Lessa/Agência DC News)

DEGUSTAÇÃO E a história da Vinícola Lucano começa exatamente quando ele perde o emprego no colégio onde lecionava, no final de 1985. Já em janeiro do ano seguinte, Rocco e o irmão Giovanni viajaram para o Sul. Visitaram a Embrapa e vinícolas da Serra Gaúcha, estudaram e abriram o negócio. É daquela região que vem a uva, após o processo de fermentação. O envelhecimento e o engarrafamento são feitos na casa da rua Mirandinha. Em 26 tonéis de aço e 60 de carvalho, alguns com capacidade para 5 mil litros. Em uma área entre barris, a casa promove visitas guiadas com degustação aos sábados, normalmente às 14h, com mínimo de duas e máximo de 20 pessoas. Cinco tipos de vinho, pão, queijo e salame, a R$ 40 por pessoa – é necessário agendar (11 94461-2519). O encontro pode se estender por horas. “Depende do papo”, afirmou Rocco. Para o também enólogo, vinho, aquele vinho mesmo, é o tinto seco. O suave é para quem está começando. A vinícola oferece os vinhos rosé, colonial, moscato, tannat, merlot, assemblage (um blend) e cabernet. A produção atual está em torno de 15 mil litros/ano. Já foi de 45 mil. Rocco cita a concorrência crescente e, acrescenta, às vezes desleal. O patriarca Leonardo vivenciou pouco a Vinícola Lucano: morreu em 1988, aos 72 anos. Dona Angela partiu em 2013, perto dos 92. Mas estão ali no dia a dia de Rocco, para quem o país andou para trás em comparação com o começo da família por aqui. “O pessoal era mais honesto e o Brasil era realmente o país do futuro.”

Com aproximadamente 130 mil habitantes, a Penha também era um bairro mais tranquilo. Rocco lembra do clássico varzeano entre o Estrela D´Alva e o Palmeirinha da Penha. Todo mundo brigava em campo e depois ia beber junto. E foi ali que nasceu (e foi sepultado) Julinho Botelho, jogador da Portuguesa, do Palmeiras, da Fiorentina e da seleção brasileira. Torna-se quase inevitável perguntar sobre o Juventus da Mooca, também na Zona Leste. Ele revela que sempre quis, mas nunca foi ao estádio da rua Javari. Quase na saída, depois de ziguezaguear pelo estabelecimento, mostra um dos temperos da casa, a Nudja Calabresa, que leva carne suína, pimenta, pimentões, erva-doce e páprica. Rocco gosta de preparar pizzas e pães, mas é parcimonioso ao falar de suas habilidades ao fogão. “Na verdade, quem cozinhava bem era minha irmã. Eu me esforço.”

A ideia de uma vinícola urbana parece estranha, mas a Zona Leste teve pioneirismo na produção de uvas. O próprio Rocco lembra de Benedetto Marengo, que no final do século 19 cultivou vinhedos na região do atual Tatuapé. Antes dele, João da Silva Carrão, o Conselheiro Carrão, advogado e político que dá nome a um bairro, também teve seu vinhedo. Mas e o vinho? Não é bebida. É alimento. E o que vai fazê-lo melhor ou pior, explica Rocco, é o momento e o estado de espírito de quem bebe. “O vinho tem alma.”

Adega da vinícola tem capacidade para 60 mil garrafas
(Andre Lessa/Agência DC News)


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