Supermercado em São Paulo vai trocar turnos de trabalho por desconto em produtos

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um supermercado que vai abrir na região central de São Paulo oferecerá descontos em produtos para quem trabalhar um turno de três horas a cada quatro semanas. Também será preciso adquirir uma cota do capital social no valor de R$ 100 para se tornar um membro da cooperativa.

A inauguração do Gomo Coop está prevista para o final de novembro, em um galpão reformado na República.

Nos primeiros meses após a inauguração, a loja será aberta ao público geral -com um preço maior para quem não participar da cooperativa. Segundo a empresa, no futuro, se houver um número grande de associados, o supermercado será exclusivo para membros da cooperativa.

O modelo, chamado “Food Coop” (cooperativa de alimentos, em inglês), é inspirado na Park Slope Food Coop, que existe há 50 anos no bairro do Brooklyn, em Nova York (EUA). Outras lojas na mesma linha incluem La Louve, na França, desde 2016, e Bees Coop, na Bélgica, desde 2017.

A Gomo Coop se autodenomina “o primeiro supermercado cooperativo e participativo da América Latina”. No Brasil, porém, cooperativas como a Rede Cooper, o Portal Coop e o Coop Supermercado são de linhas parecidas, com a oferta de benefícios para cooperados que investem um valor em dinheiro periodicamente, apesar de não exigirem trabalho presencial.

A escala de turnos de trabalho será distribuída com base na lista de pessoas que demonstrarem interesse.

MODELO DIVIDE OPINIÕES NAS REDES SOCIAIS

Nas redes sociais, usuários reagiram de formas diversas ao modelo proposto. Nos comentários do Instagram da Gomo Coop -com 16,4 mil seguidores-, há interessados em saber detalhes para participar.

Outros, porém, questionam se o turno de trabalho a cada quatro semanas não caracterizaria “habitualidade”, um dos pilares da legislação trabalhista que configuram um vínculo empregatício, ou se os descontos nos produtos poderiam caracterizar “onerosidade”.

No X (ex-Twitter), há quem questione a sustentabilidade desse tipo de negócio, e aposte quanto tempo a iniciativa deve durar. Alguns rebatem esses comentários dizendo que já há cooperativas parecidas em funcionamento dentro e fora do Brasil.

ALIMENTOS ORGÂNICOS E COM VISUAL IMPERFEITO

A proposta da Gomo Coop é vender alimentos orgânicos, sem agrotóxicos, direto dos produtores -e até com algumas frutas e vegetais com alguma imperfeição na aparência, que seriam descartados em grandes redes.

De início, porém, o supermercado também vai vender alguns produtos industrializados, ou convencionais, como o azeite. “Tem gente que faz questão de comprar morango sem veneno, mas não consegue arcar com um azeite orgânico, que é mais caro. Então, a ideia é ter opções”, afirmou Júlia Jardanovski, coordenadora do Círculo Identidade na Gomo Coop, durante uma reunião de boas-vindas.

A ideia é que todos tenham o direito de reivindicar a inclusão ou exclusão de um item das prateleiras. Se determinado produto não vende, a cooperativa debate e decide, coletivamente, se vale a pena mantê-lo.

“Quando deixamos um sabão parado na prateleira, é um prejuízo para todas as pessoas cooperantes”, diz Júlia. A ideia é que a participação dos cooperados na operação do supermercado reduza os custos e torne os produtos mais acessíveis.

Para participar da Gomo Coop, é preciso comparecer a uma reunião online de boas-vindas, em datas marcadas divulgadas no Instagram da iniciativa.

A coordenadora ainda explica que os associados terão acesso a oficinas para aprender diferentes tarefas no mercado, desde organização das prateleiras e reposição de estoque até operação do caixa e atividades administrativas.

“Não é preciso ter experiência. A ideia é que qualquer pessoa possa aprender e contribuir com o funcionamento da loja”, diz Júlia.

Devem existir, também, políticas de aposentadoria e de licença parental. Os detalhes não foram divulgados pela Gomo Coop, mas a empresa diz que as diretrizes estão sendo consolidadas no Manual da Pessoa Cooperante, que funcionará como regulamento interno e orientará o funcionamento da cooperativa.

Segundo a coordenadora, o modelo não oferece trabalho remunerado. “O cooperado não trabalha para alguém, ele participa da construção de um espaço que também é dele”, afirma.

O QUE DIZEM AS LEIS TRABALHISTAS?

As cooperativas são reguladas pela lei nº 5.764/1971, que define a Política Nacional de Cooperativismo, segundo o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Para ser permitido, o trabalho voluntário não pode ser remunerado, os cooperados precisam ser, ao mesmo tempo, donos e usuários da cooperativa, participando das decisões e eventualmente das atividades, sem vínculo empregatício.

Para a legislação, um vínculo de emprego se caracteriza pela pessoalidade (o trabalho deve ser prestado pela própria pessoa, que não pode ser substituída), habitualidade (serviço prestado de forma contínua, não esporádica), onerosidade (existência de contraprestação financeira ou vantagem pelo trabalho prestado) e subordinação (o trabalhador se submete às ordens, ao controle e à direção do empregador).

O advogado trabalhista Henrique Abrantes, da VLF Advogados, analisou o site da cooperativa e diz que seu estatuto social a qualifica formal e juridicamente como uma Sociedade Cooperativa.

“A cooperativa só pode praticar atos cooperativos em benefício dos associados, sem finalidade de lucro, e deve obedecer ao objeto social definido. Nessa hipótese, existe uma presunção legal de que não há vínculo trabalhista entre cooperativa e cooperado”, afirma.

Ele afirma que o fato de ter um desconto na própria loja não desrespeita nenhuma lei, desde que esteja descrito de forma transparente no estatuto e não imponha obrigações indevidas (por exemplo, obrigatoriedade de compra excessiva ou penalidade disfarçada no caso de quem optar por não comprar nada).

“Todavia, essa presunção é relativa: se for demonstrado que a ‘cooperação’ é meramente fachada para mascarar uma relação de emprego, pode-se afastar essa presunção e reconhecer vínculo”, diz Abrantes.

Para a Álvaro Furtado, presidente do Sincovaga-SP (Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios do Estado de São Paulo), o modelo de “Food Coop” é reconhecido e encontra paralelo em iniciativas internacionais clássicas.

Porém, ele aponta alguns pontos de cautela para adequação ao mercado varejista brasileiro. O preço mais alto para não cooperantes, segundo Furtado, “pode ameaçar os princípios da isonomia comercial e da transparência de formação de preço. Para o segmento supermercadista, há normas referentes a concorrência, formação de preços e proteção ao consumidor que devem ser observadas”, diz.

Furtado considera fundamental que a empresa mantenha o diálogo com o setor tradicional de varejo de alimentos e com as entidades representativas, como a FecomercioSP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo) e a Abras (Associação Brasileira de Supermercados), de forma a evitar “eventuais distorções competitivas ou regulatórias”.

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