ARTIGO, por Solange David: "Abertura do mercado de energia elétrica – e as PMEs?"

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Brasil tem 90 milhões de unidades consumidoras, a grande maioria de baixa tensão
(Lucas Lacaz Ruiz/Folhapress)
  • Liberação integral do mercado livre traz ganho indiscutível à economia, e dá ao consumidor mais liberdade na contratação de serviços
  • Essa liberdade já é realidade para consumidores do grupo A ou de média e alta tensão, e agora passa a ser realidade também para as PMEs
Por Solange David e João Bortotti

A partir de 2026 e de 2027, todos os consumidores regulados de energia elétrica poderão escolher livremente seus fornecedores, como ocorre com a telefonia e a internet. A abertura dos mercados elétricos varejistas é uma tendência crescente na América Latina. Este processo apresenta inúmeras oportunidades, mas também desafios regulatórios, comerciais, estratégicos e operativos para os agentes do setor e os consumidores. A ideia é possibilitar a livre comercialização com a máxima competição para buscar melhores preços para a energia elétrica e benefícios para os consumidores que passam a atuar no mercado livre. Alguns países também consideram o impacto da redução do item tarifas de energia na inflação anual.

No Brasil, há aproximadamente 90 milhões de unidades consumidoras, a grande maioria de consumidores do grupo B ou de baixa tensão, entre os quais devem se incluir as Pequenas e Médias Empresas, que passarão a ter a liberdade de escolha.  Essa liberdade já é realidade para consumidores do grupo A ou de média e alta tensão, geralmente indústrias ou grandes estabelecimentos comerciais, com tensão igual ou superior a 2,3 kV. A integral abertura do mercado no Brasil é o que prevê a Medida Provisória nº 1.300, publicada no dia 21 de maio de 2025, que estabeleceu condições para o exercício da livre escolha pelos consumidores do grupo B.

Essa MP foi recebida como um marco importante para a abertura do mercado livre de energia elétrica, de formação do mercado varejista brasileiro, entre vários outros aspectos. De forma prática, os consumidores de baixa tensão/grupo B poderão encerrar seus contratos com a concessionária de distribuição local (contratação regulada) e passar escolher de quem comprar energia elétrica (contratação livre, num mercado competitivo), conforme o seguinte cronograma:

  1. a partir de agosto/2026, os consumidores de pequenos comércios e indústrias; e
  2. a partir de dezembro/2027, todos os demais consumidores, em especial os consumidores residenciais.

Enquanto é positiva a liberação integral do mercado livre, é indiscutível que o ganho econômico é o principal motivo para o consumidor regulado exercer sua liberdade, ou seja, economia na conta de energia elétrica. Assim como ocorre com os pacotes de telefonia, se não houver ganho financeiro, em geral não há mudança. Esse comportamento é natural no mercado – existe o direito à adesão, mas os consumidores podem deixar de fazê-lo quando possa não haver economia ou haver ampliação de compromissos e obrigações.

O movimento de migração do mercado regulado para o mercado livre deverá ocorrer gradativamente. Isto porque os consumidores de baixa tensão devem conhecer essa possibilidade de escolha e estar informados sobre seus direitos e obrigações. Há bônus, mas também há ônus e riscos a serem devidamente conhecidos e ponderados. As pequenas e médias empresas consumidoras com carga inferior a 500 kW, para migrar para o mercado livre, devem ser obrigatoriamente representadas por um agente varejista na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE (a operadora do mercado de energia elétrica no Brasil).

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Há necessidade de precificar todos os custos envolvidos para que haja o devido conhecimento das obrigações e valores que integram o processo

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Solange David

Assim, os atuais contratos de fornecimento com as distribuidoras (ex. Enel, CPFL, Elektro etc., no Estado de São Paulo) deverão ser substituídos por contratos firmados com agentes varejistas que atuam na CCEE, que podem ser comercializadores ou geradores de energia. As atuais distribuidoras permanecerão no monopólio natural da atividade de distribuição via manutenção da infraestrutura para o transporte da energia elétrica (fio).

Esses agentes varejistas é que farão a venda da energia elétrica, a intermediação de contratos ou negociações, o gerenciamento do atendimento do consumo, da medição de montantes contratados e consumidos, da contabilização e da liquidação de energia no mercado, de modo geral, entre outras atividades que podem desenvolver. As plataformas de energia devem ser as grandes provedoras desses serviços para as pequenas e médias empresas, que também podem organizar ou qualificar áreas internas para determinadas atividades específicas de gestão da contratação de energia elétrica.

O preço e o prazo de vigência dos contratos de energia elétrica serão dois dos aspectos mais relevantes a serem observados pelas empresas, tendo em vista que diversos produtos podem ser oferecidos, como contratos com preço fixo, com preço variável (dia, semana, quinzena, mês, por exemplo), com preço misto (fixo e variável), com vigências distintas (um mês, um ano, dois anos e assim por diante), entre outros. As pequenas e médias empresas também poderão escolher se preferem energia denominada convencional (mix de energia) ou energia renovável (proveniente exclusivamente de fontes limpas, como hidráulica, eólica, biomassa e solar, por exemplo), para as quais poderão existir preços distintos.

Os horários de consumo também devem ser considerados, pois pode haver diferenciação de valores no caso de maior consumo em horários de pico (por exemplo – das 17 às 21h), quando a demanda é maior e a oferta pode ser menor, com elevação do preço (variações de consumo entre ponta e fora-ponta). E o que ocorre se o consumidor deixar de ser atendido pelo agente varejista? Foi criada pela MP 1.300/2025 a figura do Supridor de Última Instância – SUI, que deve ser responsável, entre outros, pelo atendimento aos consumidores no caso de encerramento da representação por agente varejista.

Os consumidores com direito ao suprimento pelo SUI ainda serão definidos, devendo ser estabelecidas, entre outros: a) as hipóteses em que esse suprimento será obrigatório; b) o prazo máximo desse suprimento; c) a eventual utilização temporária de energia de reserva para esse suprimento; e d) a forma de cálculo e alocação de custos. Para que o SUI atue, seus custos do SUI e os efeitos financeiros do atendimento aos consumidores por ele atendidos, serão rateados entre os consumidores do mercado livre, mediante encargo tarifário. Ou seja, os próprios consumidores serão responsáveis pela manutenção dessa figura no mercado varejista.

Com a conversão da Medida Provisória em lei (a MP está em tramitação no Congresso Nacional), a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deverá regular os procedimentos para facilitar a transição para o mercado livre, o que deverá se materializar em regras e procedimentos de comercialização da CCEE. Os agentes precisam estar preparados para cumprir prazos e requisitos, os quais também devem representar desafios, com a ampliação do número de ativos e contratos sob gestão.

Destaque-se que o custo global da energia dos consumidores regulados hoje considera a própria energia (tarifas baseadas em kWh), a tarifa de uso do sistema de transmissão, a tarifa de uso do sistema de distribuição, encargos e tributos, além dos subsídios inseridos nas contas. Com a liberdade de escolha pelos consumidores do grupo B, o custo global no mercado livre poderá ser reduzido com a competição no varejo, mas a representação varejista também deverá ser remunerada, assim como os encargos do supridor de última instância.

Ou seja, há necessidade de precificar todos os custos envolvidos para que haja o devido conhecimento das obrigações e valores envolvidos no processo. O consumidor regulado migrará da tarifa regulada que engloba todos os custos para o preço da energia no mercado livre, acrescido de outros custos e encargos. Os números divulgados por comercializadoras, geradoras e consultorias indicam redução substancial dos valores de energia elétrica para os consumidores livres, e é essencial que cada empresa efetue seus próprios cálculos, conforme os diversos cenários a partir da abertura do mercado e da competição que deverá ser ampliada.

A comunicação e a transparência ampliadas são imprescindíveis para esclarecer devidamente os consumidores quanto aos seus direitos, obrigações e riscos com a migração para o mercado livre. Esse é um dos aspectos mais relevantes desse processo de abertura, que se relaciona de forma direta com a atuação das pequenas e médias empresas, principalmente para a definição de suas ações de curto, médio e longo prazos. Assim, a decisão a ser tomada pelos gestores das empresas passa a ser mais estratégica, devendo considerar elementos conjunturais e estruturais, de acordo com o plano de negócios, a lucratividade almejada, o apetite a risco, o posicionamento no respectivo segmento empresarial, as variáveis existentes em relação aos produtos de energia elétrica no mercado livre.

Para que o mercado funcione de forma mais eficiente para todos, o consumidor deve conhecer o “negócio” elétrico e seus aspectos mais relevantes, e trabalhar com comunicação e transparência é mais um elemento fundamental dessa equação.

SOLANGE DAVID
Advogada, consultora, árbitra e professora especializada em negócios no setor elétrico brasileiro, onde atua há 28 anos. Também é bacharel em História, mestre e doutora em Ciências – Engenharia Elétrica pela Poli/USP. Sócia-fundadora do escritório S. David Advogados.

JOÃO BORTOTTI
Advogado especializado No setor elétrico, consultor e sócio-fundador da Dínamo Energia – consultoria e assessoria para investidores, consumidores, geradores, escritórios e comercializadores de energia elétrica.  

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