ARTIGO, por André Naves: "E agora, José? A Luz acabou… O prejuízo chegou!"

Uma image de notas de 20 reais
Restaurante Bella Napoli, na rua Oscar Freire, nos Jardins, às escuras
(Rafaela Araújo/Folhapress)
  • "O apagão é prova da falência do modelo que terceiriza responsabilidades, negligencia deveres e trata investimento como desperdício"
  • "O que vimos [no apagão] não foi imprevisto! Foi resultado de pacto de conivência entre o poder público e a iniciativa privada"
Por André Naves | colunista

As intempéries que, mais uma vez, mergulhou São Paulo no caos não foi somente um evento climático. Foi mais uma comprovação da falência de um modelo de gestão que terceiriza responsabilidades, negligencia deveres e trata o investimento como desperdício. O que vimos, da pulsante região da Rua 25 de Março aos bairros mais distantes, não foi um imprevisto! Foi, isso sim, o resultado de pacto de conivência entre o poder público e a iniciativa privada. Os governos fingem fiscalizar… As empresas fingem prestar serviços!

A performance da Enel, quando comparada a outras concessionárias do setor elétrico brasileiro, se mostra cronicamente deficiente. Indicadores de qualidade da ANEEL, como o DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Consumidor) e o FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Consumidor), frequentemente colocam a área de concessão da Enel em São Paulo em uma posição desfavorável em relação a empresas como a CPFL e a Cemig, que atuam em áreas de complexidade similar. 

Enquanto outras operadoras investem em redes mais robustas e planos de contingência com redundância, a resposta da Enel aos eventos extremos parece sempre reativa e insuficiente, evidenciando uma falha grave em sua capacidade de antecipação e resiliência.

Escolhas do Editor

O prejuízo dessa ineficiência é astronômico. A FecomercioSP estima que o último grande apagão gerou perdas de mais de R$ 1,5 bilhão para o comércio e serviços. Para entender a dimensão humana disso, basta caminhar pela Rua 25 de Março e seus arredores em um dia de caos. Imagine o coração do comércio popular latino-americano, que movimenta bilhões por ano, subitamente às escuras. Para o pequeno lojista, são máquinas de cartão inoperantes, vendas perdidas em um dia crucial, estoques parados e, para os que vendem alimentos, produtos perecíveis estragando. A insegurança aumenta, a confiança do consumidor é abalada e o planejamento de meses de um pequeno empreendedor evapora em horas de descaso.

Do outro lado da equação, temos um poder público que se revela incapaz de cumprir seu papel fiscalizador e, pior, seu próprio dever de casa. A zeladoria urbana é precária, a gestão e a poda de árvores são reativas, e o plano de enterramento da fiação elétrica – a solução definitiva – avança a passos de tartaruga. A omissão em fiscalizar rigorosamente a Enel cria um ambiente onde a má prestação de serviço é a regra.

É importante frisar que a solução não reside em demonizar a iniciativa privada, mas em exigir o uso da inteligência e da inovação. Alternativas tecnológicas para mitigar esses desastres são abundantes e conhecidas:
1. Redes Inteligentes (Smart Grids): Sistemas que se ‘autocicatrizam’, identificando e isolando falhas automaticamente, redirecionando a energia em tempo real para minimizar o número de afetados.
2. Manutenção Preditiva: Uso de drones e sensores com inteligência artificial para inspecionar a rede e o estado das árvores, prevendo pontos de falha antes que eles ocorram.
3. Enterramento Estratégico: Se o soterramento total é caro, por que não priorizar corredores essenciais, áreas hospitalares, centros de segurança e eixos comerciais vitais como a própria 25 de Março?

É aqui que está o nó górdio do debate sobre a qualidade do gasto público. Criticar a falha sistêmica não é advogar pelo desperdício de dinheiro, com o aumento indiscriminado dos gastos públicos. Pelo contrário. É defender que o investimento em infraestrutura resiliente, zeladoria competente e planejamento urbano não é “gasto”, mas a mais inteligente das economias. O verdadeiro desperdício é o prejuízo bilionário que socializamos a cada apagão. O poder público brasileiro, em todas as esferas, tem falhado miseravelmente em converter impostos em valor real para a sociedade.

Está na hora de os governos federal, estadual e municipal pensarem em alternativas concretas. A Enel precisa ser responsabilizada com mecanismos de fiscalização que funcionem. Talvez seja o momento de rediscutir o próprio modelo de concessão. Acima de tudo, precisamos ser chamados à responsabilidade como sociedade, para não mais normalizar o abandono. A tempestade expôs as vulnerabilidades da cidade. Curá-las exigirá uma nova visão de futuro, onde a economia sirva à vida e o poder público sirva, de fato, ao povo.

ANDRÉ NAVES
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social (USP). Mestre em Economia Política (PUC/SP). Cientista Político (Hillsdale College). Doutor em Economia (Princeton University). Comendador cultural. Escritor e professor.
www.andrenaves.com
Instagram: @andrenaves.def

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