Para alguns, o Centro de São Paulo é uma memória. Para outros, um lembrete vívido das contradições que assombram nossas metrópoles. Para mim, é parte intrínseca de uma jornada que se estende por mais de duas décadas, um palco de descobertas e de um amor incondicional pela cidade que me acolheu.
Em 1999, ao ingressar na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, o Centro se descortinava diante dos meus olhos como um universo inóspito e novo, um portal para a vida, para o saber e para a complexidade humana. Desde então, meus passos têm se entrelaçado com suas calçadas, seus edifícios majestosos e seus cantos esquecidos, testemunhando seus ciclos de altos e baixos, de esplendor e de negligência.
Ao longo desses 25 anos, vi o Centro flertar com a glória e mergulhar em momentos de profunda angústia. É um mosaico de histórias, de lutas, de sonhos e de desalentos. E é exatamente essa resiliência, essa capacidade de se reinventar e, ao mesmo tempo, de manter suas cicatrizes à mostra, que o torna tão fascinante e urgente.
A QUESTÃO – A pergunta que grita, inaudível mas perceptível, é: como reentronizamos o Centro em sua plenitude, em sua glória, esplendor e pluralidade?
A resposta, acredito, não reside em soluções fáceis ou em narrativas simplistas. Ela exige uma reocupação audaciosa, um ato de coragem cidadã que transcende o mero desejo e se materializa em ação e presença. É preciso “pensar além do óbvio”, como sempre nos convoca a reflexão mais profunda, mas nem sempre simplória ou confortável.
Há poucas semanas, no dia 7 de novembro, vivi mais uma experiência dessa dualidade pulsante do Centro. Saí do Teatro Municipal por volta das 23h, após assistir à ópera Macbeth. A performance intensa de Verdi ainda ressoava em minha alma, mas o que encontrei ao cruzar as portas do teatro foi um espetáculo urbano igualmente cativante. As ruas estavam vibrantes, bem movimentadas, e, para minha surpresa e alívio, a sensação era de segurança.
Casais passeavam de mãos dadas, grupos de amigos riam em frente aos bares e restaurantes, e o burburinho de vozes se misturava ao som dos carros. Era a vida em sua plenitude, desafiando a narrativa do abandono.
CONTRADIÇÕES – Entretanto, a caminhada noturna revelou também a convivência incômoda das contradições que permeiam este território sagrado. Poucas quadras depois, a beleza arquitetônica era ofuscada por pilhas de lixo que se acumulavam nas calçadas, um triste contraste com a vitalidade humana que se observava tão perto.
Essa imagem – a ópera sublime, a segurança momentânea, o lixo que desfigurava – encapsula a essência do nosso desafio: o Centro é um espaço vivo, mas um espaço que clama por dignidade e por um olhar integral.
Existe, sim, um medo paralisante e preconceituoso que nos afasta do Centro. O noticiário diário, os relatos de violência, a degradação visível de certas áreas, criam uma barreira invisível, afastando não apenas potenciais frequentadores, mas também investimentos e a necessária atenção das políticas públicas. Esse medo é real, e negá-lo seria ingenuidade. Mas é igualmente real o potencial de retomada, a resiliência intrínseca que pulsa nas fundações de cada edifício histórico, nas memórias de cada imigrante que aqui chegou, nas lutas por justiça que aqui ecoaram.
O Centro é o berço de São Paulo, o repositório de sua história, de sua cultura e de sua diversidade. Abandoná-lo é abandonar parte de nossa própria identidade. É deixar que o patrimônio se deteriore, que as histórias se calem e que a inclusão social seja uma miragem. Como cria daqui, vejo no abandono do Centro uma falha ética e social profunda. O direito à cidade, o direito a espaços públicos seguros, acessíveis e dignos, é um pilar fundamental dos direitos humanos.
Quando o Centro se torna um espaço de exclusão, de medo e de desamparo, é a dignidade de todos nós que é ferida.
PODER DA ARTE – A experiência da ópera Macbeth não foi apenas um evento cultural; foi um lembrete do poder da arte como ferramenta de coesão social e de transformação. A cultura, em suas diversas manifestações – seja uma peça de teatro, um concerto, uma exposição em um dos museus do Centro, ou mesmo a simples contemplação da arquitetura – tem a capacidade de atrair as pessoas de volta, de reativar a memória afetiva e de criar novos elos comunitários.
Valorizar o culturalismo no Centro não é apenas uma questão estética; é um investimento na alma da cidade, uma aposta em sua capacidade de congregar e de inspirar.
Não podemos nos contentar com soluções fáceis que miram apenas os sintomas, sem atacar as raízes do problema. A “melhora na segurança”, embora essencial, não pode ser a única resposta. É preciso ir além do patrulhamento ostensivo. É preciso garantir condições para que o Centro seja retomado como um espaço de convivência para TODOS: para quem trabalha, para quem mora, para quem busca lazer, para quem está em situação de vulnerabilidade e precisa de apoio.
As contradições – o lixo em demasia versus a vida e a diversidade – não são meros acasos. São reflexos de uma falta de políticas públicas integradas e de uma visão de longo prazo. Não é mera negligência individual; são as raízes estruturais de um problema complexo que precisam ser desmanteladas.
A retomada do Centro é uma responsabilidade coletiva. Não podemos terceirizar essa missão apenas para o poder público. É nosso papel, como cidadãos, manter a chama da esperança sempre acesa, mas com uma esperança estruturada, ancorada em ações concretas e no engajamento cívico.
Devemos cobrar, sim, políticas públicas robustas e integradas de Segurança Pública, que garantam a tranquilidade e a proteção de todos. Mas devemos também exigir e participar ativamente de iniciativas de Zeladoria que mantenham o espaço limpo e bem cuidado. Precisamos de políticas de habitação que tragam moradores de volta aos edifícios históricos que hoje jazem vazios, transformando-os em lares e em vida. E precisamos fomentar o empreendedorismo, a cultura e o comércio local, criando oportunidades e dinamizando a economia de forma inclusiva.
ATO DE CORAGEM – A reocupação do Centro como ato de coragem cidadã significa estar presente, frequentar seus espaços, apoiar seus comerciantes, prestigiar seus eventos culturais. Significa exercer o direito e o dever de viver a cidade em sua plenitude, recusando-se a ceder ao medo. Significa ver além do óbvio, enxergar a potência por trás da aparente decadência.
O Centro de São Paulo não é uma peça de museu a ser admirada a distância ou lamentada em sua degradação. Ele é um organismo vivo, um ser que respira e pulsa, que chora e ri. Sua vitalidade não é um dado estático; ela é nutrida pela nossa presença, pela nossa atenção e pelo nosso amor.
Devemos ter a certeza de que o Centro é nosso, que sua retomada é uma missão coletiva que exige coragem e disciplina cidadã, mas que é absolutamente possível. Que a indignação com o abandono se transforme em energia para a ação, e que a esperança, longe de ser ingênua, seja a aposta ética na capacidade de transformação que reside em cada um de nós.
Vamos juntos, pois, com os pés nas calçadas históricas e o coração aberto para o futuro. O Centro vive porque ele é vivo!
Defensor Público Federal. Especialista em Direitos Humanos e Sociais, Inclusão Social (USP). Mestre em Economia Política (PUC/SP). Cientista Político (Hillsdale College). Doutor em Economia (Princeton University). Comendador cultural. Escritor e professor.
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