É do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, a constatação de que há, no Brasil, três áreas com relevante insegurança jurídica: a tributária, a trabalhista e a da saúde. Um pesadelo para qualquer empreendedor ou dirigente com persistência suficiente para investir no país. Para os executivos da saúde, essa realidade é ainda mais cruel.
A saúde como forma de negócio é um tema complexo. Diferentemente de outras atividades econômicas, seu produto está relacionado à qualidade de vida e, muitas vezes, à sua manutenção. Uma falha do sistema ou a omissão de algum dos agentes pode levar à morte. Além do aspecto emocional, reza em nossa Constituição que todo brasileiro tem direito à saúde integral e universal. Aqui, há outro aspecto bastante peculiar do negócio.
No texto constitucional, o direito é considerado de forma coletiva; no entanto, na prática, tende a ser individualizado. Não é incomum que, diante de um desejo ou de uma demanda não atendida fora do que estabelece o contrato, o indivíduo recorra ao sistema judiciário, pois entende que a lei lhe garante direito integral e universal à saúde a qualquer custo. Sem conhecimento na área ou apoio técnico qualificado, juízes concedem liminares ou ganho de causa em ações que atendem apenas um cidadão, sem medir o reflexo na coletividade.
No entanto, o impacto dos sucessivos ganhos de causa em ações indevidas é direto e brutal nas operadoras de planos de saúde que funcionam no modelo de mutualismo, o que significa que todos os membros de um produto pagam o mesmo valor para receber os mesmos serviços. Só que, no Brasil, o contrato virou papel sem valor. Um pedido judicial impetrado por um beneficiário para contestar uma negativa justificada pelo plano de saúde é comumente deferido a favor do solicitante sem que seja feita a devida avaliação do que aquela decisão causará na coletividade ou mesmo sobre a saúde clínica do paciente.
Um exemplo comum é a concessão de medicamentos de altíssimo custo que não estão contemplados no rol da ANS. Somente contra o SUS, existem 55 processos em análise pela justiça exigindo a liberação de um desses medicamentos. Caso essas decisões sejam favoráveis aos demandantes, o custo aos cofres públicos será de mais de R$ 1 bilhão. Assim como estes, há diversos outros processos com pedidos de tratamentos sem eficácia comprovada, medicamentos fora do rol da ANS ou para uso em diagnósticos não especificados pela bula (off label). Somente em setembro de 2024, havia mais de 800 mil processos de judicialização da saúde no Brasil, dos quais 483 mil iniciados no ano passado.
As estatísticas sobre a judicialização na saúde são preocupantes também na saúde suplementar. Relatório do Bradesco BBI, com base em dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (MPSP), revelou que, em 2023, o número de ações judiciais contra operadoras de planos de saúde aumentou cerca de 50% em comparação ao ano anterior. O impacto financeiro é igualmente alarmante. De janeiro a setembro de 2024, o saldo acumulado de depósitos judiciais pelas operadoras chegou a R$ 2,67 bilhões. Nesse mesmo período, as empresas reportaram lucro operacional de R$ 3 bilhões, após dois anos de prejuízos. Mesmo essa recuperação não reflete a realidade setorial. Dados de um levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), com informações da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), indicam que 44% das operadoras de planos médicos, de aproximadamente 600 em operação no Brasil, ainda registram resultados negativos. Em 2019, eram 33%.
Se para as empresas as consequências são preocupantes, para o beneficiário, são nefastas. Sem conseguir operar no azul, cerca de 140 operadoras fecharam as portas de 2010 para cá, o que mina a capilaridade do atendimento médico-hospitalar nos rincões do Brasil. Para muitos, a saída é o SUS. Já para as operadoras que sobreviveram, o caminho rumo ao equilíbrio é reajustar as mensalidades. E ao contrário do que se acredita, essa saída é a pior para as operadoras que acabam excluindo beneficiários e não ampliando a quantidade de vidas atendidas – que é um objetivo perseguido arduamente pelas companhias. Quem sofre é, novamente, a coletividade.
Diante desse quadro, o limite do sustentável pelas operadoras está muito próximo. O risco é de um colapso do sistema de saúde brasileiro, já que faltará ao sistema público estrutura para atender os 51 milhões de brasileiros que hoje são atendidos pela saúde suplementar. É, portanto, imperativo que a sociedade, os legisladores e as operadoras de saúde se unam para encontrar soluções que minimizem a insegurança jurídica, criando um ambiente mais estável e acessível para todos.
LANA PINHEIRO
Formada em jornalismo pelo Uniceub e em publicidade e propaganda pela ESPM, tem MBA em Liderança e Gestão de Pessoas pela FGV. Com 30 anos de experiência, atualmente ocupa o cargo de chefe de gabinete da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge).