Após décadas de debates, a Reforma Tributária foi finalmente aprovada em dezembro de 2023, por meio da Emenda Constitucional nº 132. Pela primeira vez, a Constituição passou a prever, expressamente, princípios que devem orientar a interpretação e a aplicação do Sistema Tributário Nacional. A inclusão do parágrafo 3º no art. 145 estabeleceu que a tributação deve observar a simplicidade, a transparência, a justiça tributária, a cooperação e a proteção ao meio ambiente.
Trata-se de avanço importante, pois confere força normativa plena a valores que, até então, eram extraídos apenas de forma implícita do texto constitucional. Ao serem positivados, esses princípios assumem papel central na conformação de um sistema mais racional, previsível e equânime.
No entanto, a realidade está longe de refletir esse novo ideal constitucional. O que se observa, na prática, é a adoção de posturas arrecadatórias cada vez mais agressivas, amparadas por interpretações que tensionam os limites legais e violam a confiança legítima dos contribuintes.
Mais grave ainda é o fato de que essa sanha arrecadatória encontra respaldo nos próprios tribunais superiores. Mesmo quando o Poder Judiciário reconhece a ilegalidade ou inconstitucionalidade de determinada cobrança, a regra parece ser a modulação de efeitos da decisão — mecanismo que, curiosamente, só se aplica quando a tese é desfavorável ao Fisco.
Com isso, perpetua-se uma espécie de “planejamento orçamentário abusivo”: o ente público arrecada valores indevidos, retarda ao máximo o julgamento definitivo da controvérsia e, quando finalmente derrotado, preserva parte do montante arrecadado graças à modulação. O resultado é um sistema em que o Estado cobra sabendo que não pode, e o Judiciário legitima, ao menos parcialmente, essa apropriação indevida, ainda que indiretamente.
Esse padrão é facilmente identificado em temas emblemáticos. No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, por unanimidade de votos, foi declarada a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) que previa a ocorrência de fato gerador do ICMS na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte. No entanto, o STF modulou os efeitos da decisão para que ela tivesse aplicabilidade apenas a partir de 2024, no intuito de que os Estados tivessem tempo de regulamentar o tema.
O caso das subvenções para investimento também é ilustrativo. Por anos, prevaleceu o entendimento de que subvenções estaduais vinculadas a projetos de expansão não integrariam a base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Quando o tema foi finalmente pacificado no STJ, o Executivo editou a Lei nº 14.789/2023, que alterou substancialmente a sistemática, em clara tentativa de esvaziar os efeitos da decisão judicial. Trata-se de evidente ruptura da confiança legítima, com efeitos práticos retroativos e prejuízo à segurança jurídica.
Outro exemplo é a tributação dos contratos de Compartilhamento de Custos com partes relacionadas no exterior. Mesmo quando estruturados sob critérios objetivos de rateio, sem margem de lucro, a Receita Federal insiste em qualificá-los como prestação de serviços, exigindo IRRF, Cide, PIS e Cofins. Essa leitura desconsidera o caráter de reembolso típico da figura e ignora diretrizes internacionais. O resultado é um ambiente de total imprevisibilidade, onde o contribuinte nunca sabe como será interpretado.
Em nível municipal, a cobrança de ITBI em operações de reorganização societária também afronta o texto constitucional, tanto é que o STF irá discutir seus limites por meio do Tema de Repercussão Geral nº 1.348. Isso porque, a Carta de 1988 veda a incidência do imposto sobre bens incorporados ao capital social, salvo se o valor exceder o do capital subscrito. Mesmo assim, inúmeros municípios insistem em tributar operações de fusão, cisão e incorporação, tratando como fato gerador o que, na essência, é reorganização patrimonial sem transmissão onerosa.
Em todos esses exemplos, percebe-se a inversão da lógica do sistema. Em vez de buscar justiça tributária, o Estado atua como um arrecadador implacável, valendo-se de sua posição de força institucional para impor interpretações controvertidas, resistir a derrotas judiciais e, quando vencido, garantir-se por meio da modulação.
Diante desse cenário, é inevitável lembrar de um conhecido pensamento filosófico [Friedrich Nietzsche]. “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”
A sanha arrecadatória, quando descolada dos limites constitucionais e da boa-fé, transforma o próprio Estado no “monstro” que dizia combater. Em vez de proteger o interesse público e promover justiça fiscal, passa a agir como parte do problema — não da solução.
Se o sistema tributário deve, agora, orientar-se pelos princípios da justiça, da simplicidade e da cooperação, é preciso que esses valores deixem o plano retórico e se concretizem na prática administrativa, judicial e legislativa. Do contrário, o contribuinte continuará diante de um abismo normativo e interpretativo no qual, mais do que apenas olhar, é forçado a sobreviver.
LUIZ FELIPE MENEDIN
Coordenador da área de Consultoria Tributária do escritório Ayres Westin Advogados, em São Paulo.