Artigo, por Marcelo Candido de Melo: "Combata o narcisismo na empresa! Inclusive o seu!"

Uma image de notas de 20 reais
"No mundo hoje existem, segundo a IA, 1.523 unicórnios, 20 deles no Brasil"
(Imagem gerada por IA/Dall-E)
  • "A cultura da empresa não privilegiou o que era fundamental. E Titan e Titanic terminaram, 111 anos depois, em tragédia"
  • "O sucesso de uma empresa depende de sua cultura, mais do que de seus produtos. Vale até para uma pequena loja e a relação com seu público"
Por Marcelo Candido de Melo | colunista Compartilhe: Ícone Facebook Ícone X Ícone Linkedin Ícone Whatsapp Ícone Telegram

Eu nunca tive um Nissan, mas escrevi a história da agência Lew’Lara\TBWA, que criou a campanha Pôneis Malditos, um enorme sucesso há uns 15 anos. Sim eu confundo unicórnios com os tais pôneis. Você empreendedor que lê deve pensar que é inveja minha por não ter criado um unicórnio. Está coberto de razão. Adoraria ter criado um único unicórnio. No mundo hoje existem, segundo a IA, 1.523 dessas empresas, 20 delas no Brasil. Ah se eu tivesse, não estaria escrevendo, nem ouvindo pessoas, no fundo esse tanto que todo empreendedor aspira chegar é deveras perigoso. Quem chega, paga um preço.

Levar uma empresa adiante é uma tarefa hercúlea, mais ainda num país cheio de burocracias como o nosso. Nos Estados Unidos temos 758 unicórnios; na China, 343; na Índia, 64; no Reino Unido pós-Brexit, 61; e na Alemanha, 36. Chegar nesse lugar não é apenas uma questão de competência, como bem lembra Michael Sandel no seu necessário A Tirania do Mérito. Claro que existe esforço, dedicação, inteligência, e outros elementos, mas tem uma combinação de fatores que não depende de nossa ação. Quem não chegou adora lembrar isso. Quem chegou, prefere “modestamente” defender a meritocracia.

O sucesso de uma empresa depende de sua cultura, mais do que de seus produtos, isso vale até para uma pequena loja e sua relação com seu público. Buscando tema para a coluna me deparei com uma história que acaba de virar filme na Netflix: Titan – O Desastre da OceanGate, vale assistir e refletir. A matéria da Folha de S. Paulo falava sobre a tal tragédia que acabou na morte de cinco pessoas durante a explosão da cápsula submersível, a quase 4 mil metros de profundidade, quando se encaminhavam para um turismo nos destroços do Titanic.

Escolhas do Editor

MEGALOMANIA – Tudo ao redor do Titanic é gigantesco e ligado à megalomania O filme de James Cameron é a quarta maior bilheteria do cinema, US$ 2,2 bilhões desde seu lançamento em 1997. Quem assistiu e tem alguma gota de sangue romântico lembra do beijo entre Kate Winslet e um Leonardo DiCaprio no auge dos 20 e poucos anos na proa do navio ao som de Celine Dion, não se envergonhe se você tentou imitar a cena.

Zarpando da Inglaterra, o navio demandava a queima de 610 toneladas de carvão por dia, era o maior então, tinha cabines a mais de US$ 100 mil. Morreram mais de 1,5 mil pessoas, dessas, 1.160 nem sequer foram localizadas, 340 corpos foram encontrados com coletes salva-vidas na superfície, sortudas 705 pessoas foram resgatadas por um navio próximo.

No desespero depois do choque contra o iceberg, esses existem não apenas nos oceanos e são obstáculos quase sempre intransponíveis, descobriu-se a falta de coletes e de botes salva-vidas, faltaram inspeção e processos, como também se pode ver no filme sobre o Titan.

Libido em psicanálise vai além da tal energia própria do instinto sexual. Em latim, significa vontade, desejo. Freud trabalhou sua teoria de libido evoluindo-a com a teoria das pulsões. Pulsão e libido são pré-requisitos para se estabelecer uma empresa e fazê-la crescer. É possível dizer que é preciso muito tesão pela empresa e seus produtos ou serviços, porque administrar a sua rotina é algo absurdamente desafiador. Um empreendedor é também um regente de pessoas, e pessoas são singularidades complexas, por mais que apareçam gurus e modismos prometendo o contrário e você já tenha gastado alguma verba em encontros onde até se riu bastante, mas de concreto…

Já objeto é o destino de toda atenção, energia, pulsões, isso de maneira genérica. Freud identificava o início da pulsão numa excitação corporal com objetivo ou meta de suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional, ou seja, somos seres que buscam satisfação, ainda que eternamente insatisfeitos. No início ele classificava as pulsões entre as de autoconservação e sexuais. No final da sua obra, as dividia entre pulsão de vida, as que buscam manter constante a pulsão (Eros), e pulsão de morte (Tânato), que busca a descarga total da pulsão. Importante lembrar que atuam muitas vezes de maneira conjunta em busca da conservação e impedindo excessos insuportáveis.

RUSH III – No filme Titan você conhecerá Stockton Rush III, quem carrega esses sobrenomes não pode escapar do divã, o empreendedor que queria ser astronauta na infância e depois de ser engenheiro espacial por Princeton, Ivy League, e ter MBA por Berkeley decidiu que seria nos oceanos que encontraria o espaço e consagração já que a disputa pelo céu estava congestionada entre Elon Musk e Jeff Bezos e já tinha feito até outro narcisista, como Richard Branson, desistir. Desconfio que não seja nada fácil trabalhar com nenhum desses indivíduos, ainda que sejam capazes de remunerações inimagináveis.

Rush III, como bom empreendedor, colocou todos os esforços, recursos e energia para se tornar o rei dos mares, das expedições submersíveis. Afirmar que todo empreendedor flerta com o narcisismo e a megalomania é um exagero, mas não me surpreenderia que estudos mostrassem que sim, quem empreende sofre desses desvios. Eu queria ter uma das maiores editoras do mundo, acabei vendendo a pequena editora para uma das maiores do mundo…

Mas o negócio de Rush III envolvia muito mais riscos. Aliás, ao cunhar a expressão “sua excelência o bebê” Freud reconheceu que o narcisismo faz parte da nossa vida, mas que é possível e desejável que haja uma evolução e possamos entender e lidar melhor com as limitações da vida, deixando lá na infância o comportamento de reizinhos ou ditadores. Se você me disser que conhece várias dessas pessoas que poderiam ser classificadas de reizinhos ou ditadores no mundo empresarial e no político, eu não discordaria, podemos somar as listas!

O caminho vai do “eu ideal” lá dos primeiros anos para o “ideal do eu” e do que for possível à medida que a vida vai se impondo. Para Jacques Lacan “a furiosa paixão, que especifica o homem, por imprimir na realidade a sua imagem, é o fundamento obscuro das mediações racionais da vontade”. Rush III tinha os recursos suficientes para os testes e a divulgação do programa, atraiu o maior especialista do mundo em Titanic e outros dois bilionários. Um levou o filho. Pagaram US$ 250 mil cada para uma viagem de horas numa cápsula bastante apertada e de um material não certificado para aguentar as pressões lá embaixo.

Foi o desvio de sua libido para si mesmo que o fez ignorar os alertas de vários profissionais que se envolveram no projeto e que dão depoimento no filme. A consagração estava perto demais e ele, hipermetrope, perdeu a conexão. A cultura da empresa não privilegiou o que era fundamental e exatos 40.610 dias depois, ou seja, pouco mais de 111 anos, aquelas cinco pessoas somaram-se aos mortos do grandioso navio. Titan e Titanic eram projetos ousados que acabaram em tragédia.

É admirável a força dos empreendedores. Eles precisam vencer obstáculos, mas precisam encontrar maneiras de ainda ouvir as crianças dispostas a avisar que “o rei está nu!”. Antes que seja tarde.

MARCELO CANDIDO DE MELO
Escritor e psicanalista, é graduado e pós-graduado em administração pela EAESP-SP da FGV. Atuou na área de marketing de grandes empresas nacionais e multinacionais antes de empreender no mercado editorial. Sua editora alcançou bastante sucesso e foi adquirida por uma multinacional. Já escreveu 18 livros em seu nome ou como ghost-writer. Dá atenção especial à produção ficcional. Também já fez roteiro de documentário. Nos últimos anos mergulhou numa formação em psicanálise e desenvolve atividade clínica. 

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