Fui estagiário de uma grande empresa no final da década de 1980. Era o auge dos tais planejamentos estratégicos, análise SWOT, uma espécie de novidade e a companhia tinha um Credo, a primeira vez que vi. Não eram tempos de ESG e Propósito ditos e falados quase sem propósito algum. O modismo de então era a reengenharia.
A companhia havia sofrido nos Estados Unidos, pais de origem, com um escândalo de envenenamento de um remédio que conseguira conter maiores estragos num recall de produtos gigantesco. Eu ainda sonhava em ser presidente de multinacional! Era o meu destino, diziam alguns professores da GV!
Três empregos em grandes empresas me deixaram a duvidar daquela previsão, veio uma vontade de empreender e a Negócio Editora foi a primeira e única a ter uma Missão impressa nos livros, nas páginas iniciais, onde os outros a deixam em branco. Eu como dirigente máximo tentava bater naquela missão com todos que entravam? Talvez menos do que deveria, mas me orgulhava quando alguém destacava.
A empresa foi vendida para uma multinacional que imediatamente deixou de colocar a missão nos livros e em pouco tempo acabou com a marca, incorporando os principais livros ao catálogo. O concorrente estava nos planos estratégicos, tentará nos comprar três vezes, tudo mapeado.
Os modismos administrativos passam, parece que o mercado de gestão inveja o conceito de coleções da moda, CEOs não esquentam a cadeira e deixam transparecer o foco no curto prazo.
Veio a onda do propósito. Sua empresa pratica o propósito que se atribuiu? Parece que ninguém pode existir nesse mercado sem o conceito criado pelo Simon Sinek? Mas se a tendência da primavera/verão precisa ser trocada pela do outono/inverno, quando a gestão embarca nesse modus operandi, é uma atrás da outra. Há algum risco nisso?
DRUCKER – Não aderir a modismos faria diferença nas estatísticas do IBGE de que 60% das empresas fecham as portas nos primeiros cinco anos? Nem eu nem a psicanálise podemos ajudar nessas previsões. Se na primeira coluna comparei Freud com Schumpeter, nesta lembro que, assim como o pai da psicanálise, o pai da gestão também é austríaco: Peter Drucker.
Drucker nasceu em 1909 em Viena, cidade onde Freud atendia seus pacientes e produzia sua obra. Freud havia publicado quatro anos antes um livro importante: Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. E quando o pequeno Peter dava os primeiros choros no mundo, Freud escrevia sobre a fobia de outro garoto, o pequeno Hans.
Drucker foi fazer faculdade em Frankfurt, mas relata que seus pais abriam frequentemente a casa para economistas e intelectuais, entre eles o próprio Sigmund, que o teria influenciado intelectualmente e o direcionado a olhar para o lado humano, afirmando que a administração era a ciência que tratava das pessoas nas organizações. Fato que tantas vezes parece passar despercebido por gestores e até por departamentos que levam o nome delas na própria denominação.
Se Freud teorizou bastante sobre pessoas, foi um seguidor dele quem criou o conceito de estádio de espelho. Para Jacques Lacan, entre seis e 18 meses é quando a criança, ao ver sua imagem no espelho, se reconhece pela primeira vez como um “eu” unificado. Passar pelo estádio do espelho é reconhecer que o eu nasce de fora, não de uma essência interna, assim a criança se identifica com uma imagem idealizada de si mesma e não como a experiência corporal fragmentada e pode-se concluir que o eu é construído a partir de uma identificação imaginária.
IDENTIDADE – Chegando no universo empreendedor, sua empresa, a criança, também tem a identidade construída a partir de uma identificação imaginária dos consumidores, não adiantando tanto toda a projeção que você como investidor ou gestor possa fazer. Não quero com isso invalidar os propósitos, metas e esforços para criar uma cultura própria.
Mas acho fundamental alertar que vejo com mais frequência tudo ser transformado em blá-blá-blá e as pessoas pensarem apenas na própria carreira sem uma dedicação de fato ao trabalho e objetivos traçados, como se não houvesse diálogo, e regularmente não há, um lado não quer ouvir o outro, entender as dificuldades e necessidades. Uma missão, um propósito não é vivido por um funcionário que nem sequer é identificado, não colocando nessa complexa equação as questões pessoais dele que já vêm de longe e que não podem nem devem ser relevadas.
Isso quer dizer então que é só ir para o jogo? Não. É um alerta para que você se conheça, reconheça como defendia Drucker a importância das pessoas na sua organização, sem olhar de relance para as suas “obrigações” e todo olhar crítico para quem vem somar-se a você. Um propósito formal, apenas para colocar na parede e não virar motivo de risinhos dos funcionários só porque o clima é pesado, não ajuda em nada.
O sucesso da sua empresa depende de muitos fatores, inclusive sorte, mas essa, talvez escolha quem tem uma visão mais crítica e construtiva sobre as relações entre as pessoas. As diferenças são inevitáveis, deveriam ser minimizadas quando se trata de questões financeiras que alienam alguns da possibilidade de consumir. Não estou dizendo que você irá salvar o mundo, mas uma pequena diferença sempre se pode fazer. Olhe para o espelho!
MARCELO CANDIDO DE MELO
Escritor e psicanalista, é graduado e pós-graduado em administração pela EAESP-SP da FGV. Atuou na área de marketing de grandes empresas nacionais e multinacionais antes de empreender no mercado editorial. Sua editora alcançou bastante sucesso e foi adquirida por uma multinacional. Já escreveu 18 livros em seu nome ou como ghost-writer. Dá atenção especial à produção ficcional. Também já fez roteiro de documentário. Nos últimos anos mergulhou numa formação em psicanálise e desenvolve atividade clínica.