As relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos ganharam peso enorme no desenho dos cenários para a economia brasileira. Os desdobramentos da celeuma provocada pelo movimento de retaliação do governo norte-americano podem impactar o desempenho da economia brasileira, seja pelo canal financeiro, seja pelo canal comercial. Além disso, a percepção do Brasil junto aos tomadores de decisão governamentais ou de mercado deve ser impactado pelos termos dessa relação bilateral. Mais do que isso, é bem provável que não conseguiremos olhar para o cenário político em 2026 sem o devido entendimento dos efeitos Trump na paisagem política nacional.
A coluna de hoje revisita o que se esperava do governo republicano, seja em relação à ordem internacional, seja no diálogo com o Brasil. As evidências estilizadas sugerem que Trump aprendeu algo novo na sua relação com o Brasil que, em boa medida, contratou um problema de natureza político-institucional com o Brasil. A capacidade dos atores políticos em separar a dimensão política (ou seja, poder) da questão econômica é que irá condicionar a magnitude do impacto do tarifaço no mundo dos negócios do Brasil. O mandato Trump prometia duas mudanças importantes à luz da economia e política brasileira: 1: guinada na condução da política econômica e 2: mudanças na ordem internacional.
O primeiro objetivo se materializava na retomada da estratégia de estímulos à oferta, como eixo central do crescimento econômico por meio de desregulação de setores e de redução da carga tributária no capital. As mudanças da nova ordem internacional indicavam o esvaziamento das organizações multilaterais e o império do “américa first” como condutor da política externa. A interpretação tradicional apontava efeitos indiretos do trumpismo para a economia brasileira, ou seja, forte ambiente de aversão ao risco, tendência inflacionária para a economia mundial e volatilidade por conta dos conflitos geopolíticos. Os conflitos particulares entre Brasil e EUA tinham menor importância.
Os primeiros passos da administração Trump corroboraram a leitura da “excepcionalidade brasileira”. A nova versão do republicanismo do MAGA na dimensão comercial apareceu no “liberation day”, momento em que Trump anunciou as novas tarifas comerciais com os demais países – na primeira versão do tarifaço. A China ganhou, à época, de presente, uma tarifa recíproca de 34%; Vietnã foi premiada com tarifa de 46%, ao passo que o poderoso Sri Lanka com 44%, ainda que os economistas tenham apontado para algum simplismo no cálculo tarifário. De todo modo, quando a questão comercial tinha peso, o Brasil tinha ficado com tarifa de apenas 10%, o que nos colocava em uma situação de privilegiados.
Salvo mudanças de última hora, teremos 50% de tarifa nas exportações brasileiras que entrarem nos EUA. As razões apontadas para a elevação tarifária já estavam postas no dia nove de abril, data da divulgação das alíquotas. O ex-presidente Bolsonaro já não tinha direitos políticos e o Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha mostrado as caras na regulação das redes sociais. Ainda que se interprete que o real motivo das tarifas tenha a ver com a punição ao Brasil pelo seu papel no BRICS, as bases da estratégia do grupo já estavam desenhadas, o que, portanto, afasta a tese de que Trump teria reagido com a retaliação dado alguma ação intempestiva do bloco.
A responsabilidade por esse aprendizado em alguma medida recai sobre a elite política brasileira, em especial, os dois personagens mais populares da política nacional: Lula e Bolsonaro. O presidente Lula não repetiu com o governo Republicanos nos EUA, o movimento basilar da política externa do seu terceiro mandato, saber: reconstruir pontes com a comunidade internacional que foram quebradas ao longo do governo Bolsonaro, seja por questão ideológica, seja pela agenda de governo. Lula reconstruiu as relações com os vizinhos do Mercosul, com os EUA (governados por Biden); França, Reino Unido entre outros. O Brasil não era mais partidário da tese do “globalismo”.
Lula não foi uma raposa, para usar a imagem presente no clássico de Maquiavel, o Príncipe. Maquiavel recorre à essa imagem para ressaltar que o príncipe virtuoso precisa fazer uso da astúcia na relação com seus inimigos. Faltou virtu ao presidente Lula em se adaptar às novas circunstâncias políticas que apareceriam cedo ou tarde do governo Trump. A falta de realismo político abriu oportunidade para teses acerca do Brasil chegarem a Casa Branca. Aqui, entra o papel do ex-presidente Bolsonaro e seu núcleo familiar. Bolsonaro fez da ligação com o republicano uma arma para se manter relevante no campo da direita, ao sinalizar que era ele quem tinha relação com a grande inspiração dos movimentos conservadores e personificação da defesa do “Ocidente”.
Inseguro com seu lugar no campo, Bolsonaro reiteradamente defendeu sua ligação com Trump, o que incluía traços biográficos entre ambos, alvos de violência política. O eleitorado brasileiro é que irá determinar a responsabilidade de cada um dos líderes nesse jogo. De todo modo, Lula ganha uma arma para aumentar a rejeição do bolsonarismo, dificultando a construção do antipetismo unido em 2026. Trump, então, viu no Brasil a oportunidade de ampliar sua esfera de influência nas demais democracias. Há sinais de que uma parcela da elite política brasileira apoia ações de retaliação e o fez ao estilo Trump: promovendo uma espécie de bullying com os demais chefes de Estado.
As ameaças tarifárias representam oportunidades para Trump, tais como: o exercício narcisístico do poder, o gozo da submissão de diferentes países à sua vontade, gerando admiração, medo nos seus pares, especialmente das nações emergentes juntamente com a estratégia de minar a reorganização da comunidade internacional.
RAFAEL CORTEZ
Doutor em Ciência Política (USP), professor do IDP-SP e sócio da Tendências Consultoria.