Durante o ciclo de dinheiro barato (2020–2022), muita holding brasileira alongou balanço e diversificou portfólio. A Cosan foi um caso emblemático: levou sua tese além do core de açúcar/etanol, distribuição e logística, inclusive com uma posição relevante — e alavancada no consolidado — em ações da Vale. Em janeiro de 2025, já sob custo de capital bem mais alto, a empresa mudou de marcha: vendeu 173 milhões de ações da Vale por cerca de R$ 9 bilhões para reduzir dívida e “otimizar a estrutura de capital”. A razão explicitada foi objetiva: juros altos pressionam o custo de carregar ativos e o caixa do holdco.
A cronologia importa. Em outubro de 2022, a Cosan ingressou no capital da Vale com 4,9% e chegou a aventar elevar a participação a 6,5%, movimento classificado então como “diversificação em ativo irreplicável”. O contexto macro favorecia: CDI em queda, abundância de crédito e expectativa de sinergias financeiras no nível da holding. Dois anos depois, a mesma posição se torna um “cofrinho de liquidez”: a venda em bloco, em 16/jan/2025, amortiza parte relevante da dívida do grupo e reduz a chamada alavancagem dupla (dívida no holdco lastreada em ativos voláteis de controladas/participações).
Em paralelo, a Raízen — principal ativo operacional do grupo — passou a executar um programa de desinvestimentos e de reforço de capital. Após resultado trimestral de agosto de 2025 que expôs dívida líquida na casa de R$ 49 bilhões e alavancagem de ~4,5x (DL/Ebitda), a mensagem ficou cristalina: reduzir endividamento com venda de ativos e capital novo. A própria companhia e a imprensa especializada reportaram um pipeline da ordem de R$ 15 bilhões em desinvestimentos (usinas, projetos de energia, ativos fora do núcleo) e a expectativa de propostas vinculantes, até o início de outubro de 2025, para a entrada de um acionista minoritário — com grupos como Mitsubishi/Mitsui e investidores locais analisando a operação.
Esse arranjo tem lógica financeira clara. Ao vender ativos e trazer um minoritário estratégico, a Raízen reduz a necessidade de funding no nível do holdco e realinha o balanço da operação com sua geração de caixa. Parte dos desinvestimentos já saiu do papel (exemplo: alienação de usinas e outros ativos no 2º/3º tri de 2025), num processo que tende a continuar ao longo do semestre. Há, ainda, a possibilidade de monetização de ativos na Argentina estimada em até US$ 1,5 bilhão, segundo a cobertura especializada. Em síntese: liquidez primeiro, crescimento depois.
O que aprender, tecnicamente, desse roteiro
1) “Diversificação” não é o vilão; a taxa de desconto é.
Comprar um ativo fora do core pode fazer sentido como alocação financeira — desde que a conta feche pós-Selic (e pós-spread de crédito). No ambiente de juros altos, o carry dessa posição pesa no consolidado e desloca capital de giro do que, de fato, paga as contas: o core operacional. A decisão de vender a participação na Vale quando o custo de capital subiu é, tecnicamente, um exercício de opcionalidade: realiza caixa, reduz DL e recupera “pernas” para as operações.
2) Dupla alavancagem pede limites duros.
Quando a controladora toma dívida para deter ativos de controladas (ou participações financeiras), nasce o risco de mismatch de prazos e volatilidade: as dívidas têm serviço mensal; os ativos, preço marcado a mercado e ciclos de geração. O resultado prático, em Selic alta, é o efeito tesoura: juros sobem, o fluxo aperta e o preço dos ativos oscila. Vender o ativo mais líquido (ações Vale) para preservar a operação (Raízen) é ortodoxia de gestão de risco.
3) Estrutura de capital é engenharia, não fé.
A disciplina aqui envolve métricas objetivas: DL/Ebitda em patamar prudente para o ciclo; DSCR acima de 1,3x em cenário de estresse; e covenant headroom confortável. O balanço publicado pela Raízen em agosto, com salto de despesas financeiras e alavancagem acima do desejável, tornou o remédio inevitável: vender periféricos e discutir capitalização minoritária.
4) Governança de portfólio separa adjacência de aventura.
Adjacência é aquilo que compartilha competências (ativos, canais, tecnologia, regulação). O que foge disso deve ser tratado como investimento financeiro com stop-loss definido. Caso contrário, a holding vira um ETF alavancado — e ETF alavancado, em Selic alta, machuca.
Uma analogia simples: Ebitda é o “VO₂ máx” da empresa; Selic é a gravidade. Com gravidade baixa, até corredor de fim de semana vira maratonista. Quando a gravidade sobe, só quem treinou (capital) e dormiu bem (liquidez) cruza a linha.
Possíveis desfechos (e como lê-los)
No base case, a Raízen fecha a venda de um bloco relevante de ativos até o fim do ano-safra e recebe um cheque minoritário que reforça o caixa, reduz a alavancagem e reordena o cap table sem perda de controle estratégico. O episódio da Vale deixa a holding mais “leve” e com menos volatilidade financeira exógena. Se o custo de capital doméstico aliviar em 2026, o ciclo de desalavancagem acelera.
No downside, atrasos em desinvestimentos ou valuation aquém do esperado obrigam a alongar a agenda de vendas e considerar captações adicionais/dilutivas. O risco não é teórico: o próprio resultado recente da Raízen mostrou como despesas financeiras corroem margem quando a dívida cresce mais rápido que o Ebitda.
O paralelo com as empresas familiares
O Brasil é, majoritariamente, um país de empresas familiares: algo como 90% do tecido empresarial, responsáveis por mais de metade do PIB e cerca de 75% dos empregos. Em tese, esse ecossistema é resiliente; na prática, sofre quando confunde diversificação com dispersão e quando mistura dívida de holding com investimento “de oportunidade”. O ciclo de 2024-2025 expôs essa fragilidade: 2.273 pedidos de recuperação judicial em 2024 (+61,8% versus 2023), recorde da série histórica, com a tendência ainda elevada em 2025. A moral macroeconômica é direta: juros altos selecionam balanços.
Como traduzir a lição da Cosan/Raízen para o seu Conselho? Em linguagem de CFO: testes de estresse com Selic +500 bps, política de desinvestimentos pré-aprovada (o que sai primeiro se apertar o caixa), e sem dupla alavancagem, sem hedge e sem travas de risco. Diversificar pode ser virtuoso — desde que a TIR pós-impostos sobreviva ao choque de juros e que o cronograma de sinergias seja medido contra o calendário da dívida, não contra a vontade do acionista.
Em síntese, o caso Cosan/Raízen não é um “conto de hybris”; é uma aula de engenharia financeira aplicada: quando a gravidade aumenta, quem ajusta a mochila chega inteiro ao fim da trilha.
ROBERTO VALVERDE
Conselheiro, M&A advisor e empreendedor. Após exit da empresa de mobilidade urbana que fundou, a Master Park, vendida para o fundo de Private Equity Pátria, atua como advisor de M&A em operações de venda e já transacionou mais de R$ 2 bilhões em deals. É conselheiro consultivo e de administração em diversos setores da economia, como transportes, saúde, indústria, consultoria, tecnologia, serviços e educação.