Biografia de Leão 14 retrata papa como moderado de mão firme contra extrema direita

Uma image de notas de 20 reais

Imagem gerada por IA

SÃO CARLOS, SC (FOLHAPRESS) – A primeira biografia para que Leão 14 topou dar entrevista após ser eleito papa, em maio, busca retratá-lo como um homem moderado e de fácil trato, mas capaz de atuar com mão firme contra a influência da extrema direita dentro da Igreja Católica, enfrentando até mesmo pistoleiros para isso.

Escrito pela vaticanista americana Elise Ann Allen, do site de notícias católicas Crux, o livro está sendo lançado primeiro em espanhol e recebeu o título “León 14: Ciudadano del Mundo, Misionero del Siglo 21” (“Leão 14: Cidadão do Mundo, Missionário do Século 21”).

A escolha da língua espanhola muito provavelmente é estratégica, considerando que, como sacerdote e bispo, o americano Robert Prevost passou os anos mais importantes de sua carreira como missionário da ordem dos agostinianos no Peru, em especial na costa norte do país, em cidades como Trujillo e Chiclayo.

Como se dizia durante o conclave deste ano, Prevost era “o americano menos americano” dos cardeais, e a apuração conduzida por Allen parece reforçar isso. Na longa entrevista que encerra o livro, conduzida no Palácio do Santo Ofício, em Roma, o papa afirma que, no caso de um jogo de Copa do Mundo, “provavelmente” torceria pelo Peru contra os EUA.

Embora a obra busque reconstruir toda a trajetória pessoal e eclesiástica do pontífice nascido em Chicago, os trechos mais longos, e alguns dos mais tensos, concentram-se no papel de Prevost dentro dos embates pastorais e políticos enfrentados pelo catolicismo peruano desde o fim dos anos 1980.

Ele deixou o país de vez apenas em 2023, quando o papa Francisco o nomeou chefe do Dicastério para os Bispos e, pouco depois, cardeal.

Os aspectos de continuidade com Francisco —ou, a rigor, de trajetória semelhante à do argentino— são destacados o tempo todo na narrativa de Allen, a começar pela humildade e simplicidade pessoal e pela relação próxima com os fiéis mais carentes.

Talvez mais intrigante ainda, porém, seja a maneira como a vaticanista americana retrata a relação de Prevost com as tendências políticas de esquerda e com as crises enfrentadas pelo Peru do fim do século 20 até agora.

De um lado, o hoje papa aparece como um admirador do dominicano Gustavo Gutiérrez (1928-2024), considerado o fundador da Teologia da Libertação. Essa abordagem, que teve grande impacto na Igreja latino-americana a partir dos anos 1960, defendia o engajamento político de sacerdotes e leigos no combate à pobreza e às injustiças sociais e chegou a se aproximar de movimentos revolucionários com inspiração marxista.

“Na perspectiva de Gustavo Gutiérrez, a Teologia da Libertação significa começar a ver as coisas através dos olhos dos pobres e com os pobres, para entender como Deus está em nós e entre nós. Não significa necessariamente que você esteja promovendo a ideologia marxista, ainda que muitos a tenham rotulado dessa maneira”, disse o papa em outra entrevista à autora. “Nesse sentido, creio que há muitos estilos dentro dessa grande escola da Teologia da Libertação.”

Ao mesmo tempo, Prevost e seus confrades agostinianos no Peru enfrentaram o terrorismo de esquerda promovido pelo grupo Sendero Luminoso e a ditadura de Alberto Fujimori, de 1990 a 2000, entre outras crises nacionais.

Quando galgou posições de autoridade em sua ordem, ele buscou agir de forma moderada e com espírito conciliador, segundo a biógrafa, embora não proibisse que seus subordinados tivessem atuação política, desde que pautada pela não violência.

Os embates mais importantes, de acordo com Allen, viriam depois que Prevost se tornou bispo de Chiclayo, em 2015. Na época, a Igreja peruana se tornou um dos focos dos escândalos sexuais envolvendo membros da hierarquia católica, por conta da atuação do SCV (Sodalício de Vida Cristã, na sigla em latim).

O SCV, classificado tecnicamente como sociedade de vida apostólica, era uma organização que reunia tanto sacerdotes quanto fiéis leigos e defendia um tipo de espiritualidade conservadora e ascética, com comunidades próprias e uma retórica de “guerra espiritual”. Seus membros mais graduados tinham inclinações políticas de extrema direita.

Denúncias sobre abusos sexuais, físicos e psicológicos dentro do SCV se multiplicaram, em especial depois da publicação do best-seller “Mitad Monjes, Mitad Soldados” (“Meio Monges, Meio Soldados”), dos jornalistas Paola Ugaz e Pedro Salinas, em 2015.

Enquanto boa parte do clero peruano passou a atacar a obra, Salinas declarou que Prevost o apoiou e que, como membro da comissão antiabuso da conferência de bispos peruana, fez de tudo para apurar o caso e dar suporte aos violentados. “Ele veste a camisa das vítimas”, disse o jornalista e autor. O papa Francisco acabaria dissolvendo o SCV.

Segundo Allen, a influência de Prevost também foi importante para contrabalançar o peso da organização católica conservadora Opus Dei no clero peruano, ao defender um sistema de paróquias com mais participação e voz dos leigos.

Por fim, o futuro papa também foi escolhido, em 2020, como administrador temporário de outra diocese do Peru, na cidade de Callao, para enfrentar a crise causada pelo bispo anterior, membro de mais um movimento conservador da Igreja, o Caminho Neocatecumenal.

Popularmente conhecido como “Catecumenato” ou “Caminho” no Brasil, o grupo adota detalhes litúrgicos (rituais da missa) próprios e uma espécie de formação continuada para seus membros, entre outras peculiaridades.

O bispo, o espanhol José Luis Pérez-Medel, teria tentado forçar todos os fiéis sob sua jurisdição a adotar as práticas do “Caminho”, inclusive mandando pistoleiros para ameaçá-los. Foi destituído, cabendo a Prevost a tarefa de pacificar a diocese. O sucesso, segundo a biografia, teria cacifado o bispo americano a obter o chapéu de cardeal.

Na entrevista que encerra o livro, Leão 14 reconhece que “há coisas preocupantes acontecendo nos Estados Unidos” e reitera a defesa dos direitos dos imigrantes que marcou o pontificado de Francisco. Apresenta perspectivas modestas para a diplomacia do Vaticano e diz que o papel da Igreja é defender os valores essenciais.

“Não acho que meu papel principal seja o de tentar ser o solucionador dos problemas do mundo. É preciso voltar às coisas mais básicas, como nos respeitarmos uns aos outros, respeitar a dignidade humana. De onde vem essa dignidade humana e como podemos usar isso como forma de dizer que o mundo pode ser um lugar melhor?”

LEÓN XIV: CIUDADANO DEL MUNDO, MISIONERO DEL SIGLO XXI

– Preço R$ 126,83 (importado, sem previsão no Brasil)

– Autoria Elise Ann Allen

– Editora Debate

Voltar ao topo