Café brasileiro gerou tensão nos EUA há um século

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O café brasileiro nunca sofreu um golpe tão duro vindo do governo dos Estados Unidos quanto a sobretaxa de 50%, que começou a valer no último dia 6, dizem especialistas.

O tarifaço da administração de Donald Trump afeta quase 4.000 itens brasileiros, mas o caso do café é especialmente traumático pela longevidade e pela dimensão das relações comerciais que ligam os dois países ao produto.

Os EUA são o maior importador do café brasileiro desde o final do século 19, quando as sacas eram levadas de trem das fazendas paulistas para a estação do Valongo, ao lado do porto de Santos.

No ano passado, como de praxe, os EUA ocuparam a liderança entre os maiores importadores do café brasileiro, com cerca de 16,5% das compras, que correspondem a 7,6 milhões de sacas de 60 kg.

Datas e percentuais como esses podem dar a ilusão de relações invariavelmente harmoniosas. Mas os atritos que contrapõem o governo dos EUA aos cafeicultores brasileiros vêm de longe. Um dos mais remotos momentos de tensão emergiu há mais de um século, com a política de valorização do café, sacramentada no Convênio de Taubaté, em 1906.

Para entender esse acordo em linhas gerais, é preciso voltar ao final do século 19. Na década de 1890, o aumento da imigração italiana e a ampliação da rede ferroviária no estado de São Paulo levaram a uma alta da oferta de café, que foi além da demanda, conta Leonardo Weller, professor de história econômica da FGV-SP.

O preço da saca nos EUA caiu de US$ 17 em 1892 para um mínimo de US$ 6,54 em 1902 e se manteve em baixa nos anos seguintes.

As circunstâncias apontavam para 1906 como um ano-bomba para os produtores brasileiros. Além dos preços em queda, estava prevista uma supersafra de café, que elevaria ainda mais a oferta e poderia empurrar muitos desses fazendeiros para a bancarrota.

Por pressão dos cafeicultores do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e, principalmente, de São Paulo, onde a produção era bem maior que a dos estados vizinhos, foi fechado um acordo em fevereiro de 1906, o Convênio de Taubaté, que previa a compra do excedente das safras de café principalmente pelo governo paulista para manter a estabilidade do preço.

Havia ainda a questão cambial. “Como essa aquisição seria financiada com empréstimos externos, era necessário adotar um regime de câmbio fixo, evitando que a avalanche de moeda estrangeira nos cofres do governo provocasse uma valorização excessiva da moeda nacional e prejudicasse os exportadores”, escreve o historiador Pietro Sant’Anna no volume sobre o presidente Afonso Pena da coleção A República Brasileira 130 Anos.

A abertura de uma instituição responsável por fixar a taxa de câmbio dependia de um decreto federal e, assim, Pena criou a Caixa de Conversão.

“A operação de financiamento foi complexa e envolveu diversos bancos [dos EUA e da Europa] como credores”, afirma Felipe Loureiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP.

“Também foram firmados contratos de crédito com grandes intermediadores comerciais do café, como Herman Sielcken, da New York Dock Company. Nesse caso, as sacas compradas e estocadas no exterior foram colocadas em consignação como garantia do empréstimo.”

O arranjo deu resultado. Em 1906 e no ano seguinte, o preço da saca se manteve praticamente estável -muito provavelmente teria sofrido uma queda forte sem a intervenção. A partir de 1908, passou a subir, causando um incômodo crescente no governo de William Howard Taft (1909-1913) e nos consumidores americanos, bem adaptados ao café brasileiro.

A edição de 30 de maio de 1912 do jornal O Estado de S. Paulo registrou que a presidência de Taft havia aberto um processo no Tribunal de Nova York contra os cafeicultores brasileiros, que estariam infringindo a lei antitruste americana. A mesma reportagem citava a tentativa de um procurador do governo dos EUA de apreender o café sob o poder de Sielcken, iniciativa que não avançou.

Essas movimentações “tiveram impacto na sociedade brasileira porque batiam de frente com o coração da política de valorização do café, que era a garantia de que as sacas ficariam estocadas e poderiam ser revendidas a partir de um determinado momento com um preço maior”, diz Loureiro.

Ao final, EUA e Brasil chegaram a uma conciliação sobre as condições de venda do produto.

Nos anos 1920, o programa de valorização do café como concebido em 1906 já não existia. Surgiram, porém, novos arranjos para controlar o preço. Desta vez, a participação paulista passou a dividir o protagonismo das operações com o governo federal, que financiava a compra dos excedentes principalmente com emissão monetária, como explica Weller.

O objetivo, segundo o professor da FGV-SP, continuou sendo dar um “subsídio ao café, deixando o preço artificialmente alto”.

Mais uma vez, os EUA reagiram. Os protestos de beneficiadores de café e de consumidores ganharam força com o apoio de Herbert Hoover, secretário de Comércio de 1921 a 1928. “Para Hoover, os EUA estavam sendo lesados pelo que ele entendia ser um monopólio global do Brasil na produção e na venda de café”, afirma Felipe Loureiro.

Hoover, mais tarde presidente dos EUA, passou a encabeçar uma campanha pública contra o café do Brasil e a pressionar as casas financeiras para que não emprestassem mais dinheiro ao governo do país nessa operação de apoio aos cafeicultores.

Assim, o Instituto de Defesa Permanente do Café, que havia sido criado pelo governo de São Paulo, decidiu concentrar suas negociações com os bancos britânicos.

Um contra-ataque da comunidade financeira norte-americana contribuiu para um apaziguamento da situação, segundo o professor da USP. Wall Street reclamou da perda gradativa de um mercado em ascensão, o Brasil. Sob pressão, o governo dos EUA recuou em suas ameaças.

Também houve uma mobilização dos presidentes Arthur Bernardes (1922-1926) e Washington Luiz (1926-1930) em busca de uma conciliação.

“Por fim, os canais financeiros voltaram a funcionar normalmente, e o governo norte-americano não tomou nenhuma atitude concreta contra o produto”, diz Loureiro.

Em suma, esses dois episódios -na virada dos anos 1900 para 1910 e depois em 1920- preocuparam bastante os cafeicultores brasileiros, além dos governos federal e estaduais. No final das contas, porém, não resultaram em prejuízos significativos para o país, de acordo com Weller.

Os grandes danos viriam mesmo com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, mas essa é outra história.

Sempre com o café como mote, há comparação entre o que ocorreu naqueles dois momentos nas primeiras décadas do século 20 e o que acompanhamos agora, com o tarifaço de Trump?

“Vejo um único paralelo, que é uma ação econômica unilateral patrocinada ou apoiada pelo governo norte-americano contra o Brasil”, diz Loureiro. “Mas em nenhum desses casos antigos há uma medida tão explícita e dura quanto a que é feita agora.”

Além disso, afirma o professor da USP, as reações dos EUA tinham um foco claro naquele período, a alta de preços do café brasileiro conduzida pela política de valorização. “Agora existem interesses comerciais envolvidos, mas a motivação de Trump é eminentemente política.”

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