SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Às vésperas da data que pode selar o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, a conclusão do tratado encontrou uma oposição de peso: o posicionamento da primeira-ministra da Itália Giorgia Meloni, que indicou que vai aderir ao grupo de insatisfeitos com o pacto, liderado pela França.
O posicionamento pode adiar a assinatura do documento, objeto de negociações que se arrastam por mais de duas décadas, e que implementam um tratado que abarcaria um mercado de aproximadamente 720 milhões de pessoas.
A União Europeia é atualmente o segundo maior parceiro comercial do Mercosul, depois da China e à frente dos Estados Unidos. Em 2023, a União Europeia representou 16,9% do comércio total do Mercosul.
No ano passado, a União Europeia exportou 55,2 bilhões de euros em produtos para o Mercosul, enquanto o bloco comercial da América do Sul enviou 56 bilhões de euros em produtos para a UE, segundo dados da Eurostat.
O que é um tratado de livre-comércio?
É um acordo entre países ou blocos de países que tem como objetivo reduzir ou zerar tarifas e eliminar outras barreiras de importação e exportação.
Quando as negociações entre Mercosul e União Europeia começaram?
O acordo começou a ser negociado em 1999 na Cúpula Mercosul-UE no Rio de Janeiro, quando foi anunciado o objetivo de se iniciar negociações do tratado. As negociações entre UE e Mercosul foram inicialmente concluídas em 2019, mas o texto foi reaberto e aprovado apenas em dezembro de 2024.
De lá para cá, o Parlamento Europeu aprovou regras mais severas para monitoramento de preços dos produtos comercializados dentro do bloco, sujeitos a investigações e sanções em caso de prejuízo a produtores agrícolas. Mas isso foi insuficiente para aplacar os temores dos países europeus, receosos dos eventuais prejuízos causados pelas importações de produtos do Mercosul.
O que o acordo prevê?
No caso do Mercosul, o acordo prevê a eliminação de tarifas que, a depender do setor, pode ser imediata ou gradual ao longo de prazos que variam de 4 a 15 anos (com exceções para o setor automotivo). Isso cobre aproximadamente 91% dos bens das importações brasileiras de produtos da UE.
Para a União Europeia, a liberação é prevista de forma imediata ou gradual em prazos que variam de 4 a 12 anos. Os produtos afetados correspondem a aproximadamente 95% dos bens brasileiros exportados ao bloco europeu.
Há ainda produtos sujeitos a cotas, principalmente os da agroindústria. Nesse caso, eles representam 3% dos bens brasileiros exportados à UE.
O acordo também trata de serviços, investimentos, compras governamentais, medidas sanitárias e de propriedade intelectual.
Se o acordo for assinado, quais serão os próximos passos?
Para facilitar a aprovação, houve uma divisão: o acordo comercial foi separado do político. Como as questões de comércio exterior são de competência da União Europeia, não haveria a necessidade de aprovação por cada um dos Estados membros. Seria suficiente, então, a aprovação pelo Parlamento Europeu. Do lado do Mercosul, será necessária a aprovação dos integrantes -no Brasil, o processo envolve Poderes Executivo e Legislativo.
Há ainda a possibilidade de judicialização no âmbito europeu. Um pequeno grupo de parlamentares europeus, que se opõem ao tratado, quer levar o documento à Corte de Justiça da UE, mais alta instância jurídica do bloco. Resolução nesse sentido está retida na mesa da presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, que promete levar o assunto a plenário “no tempo certo”.
Outra perspectiva de o assunto parar nos tribunais pode ocorrer quando o acordo for apreciado nos Parlamentos nacionais. Rejeição de qualquer ordem pode servir de argumento para confrontar judicialmente a legalidade do acordo inteiro, comprometendo a parte comercial. Seria outro processo que consumiria anos.
Quais são as salvaguardas previstas no acordo?
O Parlamento Europeu aprovou em 16 de dezembro deste ano uma série de salvaguardas (medidas de proteção comercial) mais rígidas para amenizar a intransigência da França, principal opositora ao tratado, mas estas foram consideradas insuficientes pelos países.
Pelas regras, Bruxelas lançaria uma investigação em caso de flutuação excessiva nos preços de mercadorias sensíveis e exigiria também que os produtos do Mercosul fossem sancionados se não cumprirem os exigentes padrões sanitários e ambientais do bloco.
Se um artigo importado do Mercosul chegar à Europa com uma diferença de preço 5% maior do que a média dos últimos três anos ou se o volume da cota isenta variar também mais do que 5%, o gatilho para investigação seria acionado.
Os produtos que mais preocupam os legisladores europeus são a carne bovina e de aves, em que o Brasil é um dos maiores produtores, e o açúcar. Teme-se uma invasão de produtos sul-americanos em caso de problemas na cadeia de produção agrícola europeia. Por isso a promessa de Bruxelas de monitoramento “quase em tempo real” dos mercados.
Quem ganha e quem perde com o acordo?
O acordo criaria um mercado comum de 722 milhões de pessoas, com economias que juntas somam US$ 22 trilhões, segundo o governo brasileiro.
Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) calcula que o acordo provocaria um crescimento de 0,46% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro até 2040. Em termos relativos, aponta o levantamento, o Brasil obteria ganhos maiores que os países da União Europeia (aumento de 0,06% no PIB) e dos demais países do Mercosul (alta de 0,20%).
Para o Mercosul, uma das principais vantagens é que as tarifas de importação de 77% dos produtos agropecuários enviados para a UE seriam eliminadas, beneficiando principalmente carnes suína e de frango, pecuária bovina, frutas e vegetais.
Na outra ponta, há setores no Brasil com impacto negativo, como equipamentos elétricos, máquinas e equipamentos, produtos farmacêuticos, têxteis e produtos metalúrgicos, que seriam os mais prejudicados, segundo o Ipea.
Já a União Europeia teria acesso ao gigantesco e atualmente bastante protegido mercado dos países do Mercosul, ampliando a demanda por seus produtos.
Um ponto importante que vem servindo de argumento para o avanço no acordo é que o tratado é uma forma de compensar a perda de comércio devido às tarifas impostas por Donald Trump ao mundo.
Como funciona o acordo automotivo dentro do tratado?
O setor automotivo teria um período de eliminação tarifária mais longo, com o objetivo de atenuar o impacto da entrada de carros e partes europeus em condições mais competitivas no Mercosul. A eliminação de tarifas para veículos a combustão segue sendo de 15 anos, mas passou para 18 anos no caso dos carros eletrificados. Para veículos a hidrogênio, o prazo foi fixado em 25 anos, com 6 anos de carência.
Ainda no setor automotivo, foi incluída uma salvaguarda que poderia ser acionada caso o aumento de importação de carros da Europa cause danos à industria nacional. Nessa hipótese, o Brasil poderia suspender o cronograma e reaplicar a tarifa de 35% por um período de 3 anos, que pode ser renovado por mais 2 anos.
O que o acordo prevê para o agronegócio?
As tarifas de importação de 77% dos produtos agropecuários que a União Europeia adquire do Mercosul seriam eliminadas gradualmente.
Isso permitiria que o agro aumente as exportações de itens como café, frutas, peixes, crustáceos e óleos vegetais, cujas taxas de importação seriam gradualmente zeradas pela União Europeia.
O que o acordo prevê em termos de combate às mudanças climáticas?
O acordo prevê que o Acordo de Paris, tratado internacional de combate às mudanças climáticas, é um elemento essencial do relacionamento entre União Europeia e Mercosul. O acordo poderia ser suspenso caso uma das partes esteja em grave violação do acordo de Paris ou decida abandoná-lo.
Um fundo de 1,8 bilhão de euros de apoio da UE facilitaria ações mutuamente benéficas para a transição verde e digital justa nos países do Mercosul, como parte do Global Gateway. Isso garantiria o desenvolvimento de indústrias locais, equipando os países do Mercosul com as capacidades industriais necessárias para enfrentar os desafios futuros.
Por que o acordo anunciado em 2019 foi renegociado?
As conclusões das negociações ocorreram pela primeira vez em meados de 2019, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL). No entanto, houve forte oposição na Europa contra a política e as declarações antiambientais do então líder brasileiro.
Como resultado, o acordo ficou anos na gaveta, sem ser enviado para análise do Parlamento Europeu ou dos Legislativos do países do Mercosul.
Com a chegada do presidente Lula (PT) ao poder, parte das resistências sobre meio ambiente foi contornada, mas o Mercosul e a UE reabriram as negociações para mudar itens relacionados às exigências ambientais e à política de compras governamentais.