França está totalmente errada em se opor a acordo com Mercosul, diz ex-negociador europeu

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Crédito: Bruno Peres/Agência Brasil

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Um dos maiores especialistas europeus no acordo UE-Mercosul é o francês Jean-Luc Demarty, 73. Ex-diretor-geral de Agricultura (2005-2010) e de Comércio Exterior (2011-2019) da Comissão Europeia, ele participou ativamente, ao longo das últimas duas décadas, da negociação do tratado de livre comércio prestes a ser ratificado.

O Parlamento Europeu aprecia nesta terça-feira (16) salvaguardas inseridas no Acordo União Europeia-Mercosul, penúltimo passo de sua tramitação no bloco. Enquanto isso, cresce a oposição à sua ratificação, na quinta (18), no Conselho da União Europeia.

Rara voz favorável ao acordo na imprensa francesa, Demarty adverte nesta entrevista para graves consequências em caso de rejeição.

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PERGUNTA – Na sua opinião, a França está errada em se opor à aprovação do acordo?

JEAN-LUC DEMARTY – A França está completamente errada. A Europa sempre se desenvolveu com base em um comércio de que as diferentes partes se beneficiam, e não um comércio unilateral em que eu ganho e você perde, como com Donald Trump. O problema é que o Mercosul é a zona mais competitiva do mundo nos produtos mais sensíveis na Europa: a carne bovina, o açúcar e a avicultura. Essa dificuldade foi resolvida, uma vez que existem cotas -aliás, não muito elevadas, da ordem de 1,5% do consumo de aves, açúcar ou carne bovina da UE. Portanto, na realidade, esse problema está resolvido. A grande dificuldade é que a França está mal, de modo geral e na agricultura em particular. Há 15 anos a França vem suicidando sua agricultura. Nesse contexto, fizeram crer aos agricultores que os acordos de livre comércio eram o problema. Não é o caso. Com o Mercosul, a agricultura não vai ganhar, mas também não vai perder significativamente. Haverá perdas na carne bovina, mas todos os estudos mostram que serão reduzidas. Não se pode imaginar que 1,5% do consumo interno da UE vá ter efeitos significativos. Além disso, haverá ganhos no mercado do Mercosul. Como de costume, há problemas na França, mas não fazemos o diagnóstico correto sobre a causa. Procuramos culpados em outro lugar.

P – O atendimento das três condições apresentadas pela França -as chamadas cláusulas de salvaguarda, medidas espelho e as medidas sanitárias e fitossanitárias- bastaria?

JD – É claro que se deve evitar provocar a França, mas não adianta nada tentar a todo custo obter o acordo dela. É um acordo que depende da maioria qualificada, de 15 Estados-membros e 65% da população. De qualquer forma, essas histórias de cláusulas espelho, normas sanitárias e salvaguardas são muito exageradas. Todos os produtos importados pela UE, com ou sem o Mercosul, já têm que respeitar nossas normas. São problemas imaginários. É claro que é preciso controlar, mas não há um problema generalizado. Sobre as cláusulas-espelho, pedir ao Brasil e ao Mercosul que se alinhem às nossas condições de produção para ter 1,5% do nosso mercado, francamente, é uma piada. Além disso, os agricultores europeus recebem 40 bilhões de euros (R$ 254 bi) em ajuda todos os anos, em parte para compensar a diferença de custos de produção em relação a países terceiros. Portanto, já são compensados. Quanto às cláusulas de salvaguarda, a verdadeira salvaguarda são as cotas tarifárias. É preciso evitar que sejam usadas de forma excessiva. Francamente, para mim, não é uma questão.

P – Até que ponto o senhor acredita que Emmanuel Macron está ciente desses argumentos, mas não pode dizer, por causa da opinião pública francesa e dos agricultores?

JD – Macron é uma pessoa inteligente, conhece o assunto. Quando começou com a história das cláusulas espelho, sabia que eram impossíveis de obter em uma negociação. Há uma expressão francesa que diz: “Querer a manteiga e o dinheiro da manteiga”. Eu fui um negociador respeitado mundialmente. Trabalhei muito bem com seus compatriotas, Roberto Azevêdo [ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio] e Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores e hoje assessor especial de Lula]. E não se pode negociar a manteiga e o dinheiro da manteiga. O acordo foi concluído quando eu ainda era diretor-geral de Comércio Exterior da Comissão Europeia, em 2019, e Macron foi bastante favorável naquele momento. É claro que ele tem um problema com a opinião pública francesa, acirrada pelos demagogos, que fizeram crer que isso se deve aos acordos de livre comércio.

P – São 25 anos de negociações…

JD – Não, não são. Na verdade, me perdoe, mas a negociação [inicial] durou dois anos, em 2003 e 2004. Mas naquela época o Mercosul não cedia em nada. Houve um relançamento em 2011, mas não foi muito longe. A verdadeira negociação ocorreu entre 2016 e 2019, quando eu estava no final do meu mandato como diretor-geral de Comércio Exterior. Foi congelada pelos motivos que expliquei [Bolsonaro] e retomada em 2023, quando Lula chegou à presidência. Acrescentamos alguns elementos, mas o essencial já estava no acordo de 2019.

P – O sr. não teme que, no futuro, com o acordo assinado, a situação mude no Brasil e até mesmo na França, com a ultradireita chegando ao poder?

JD – Não. De qualquer forma, em primeiro lugar o acordo tem que ser ratificado pela UE. A situação continua bastante tensa. É necessária uma maioria qualificada. Acho que a teremos. Tudo depende agora da Itália. Se a Itália não estiver na maioria qualificada, o acordo não será ratificado, o que seria uma catástrofe absoluta para a União Europeia, que iria muito além do Mercosul. Sei que a França pediu um prazo adicional. Vamos ver, espero que nossos amigos do Mercosul não fiquem muito impacientes. É por isso que é muito importante explicar claramente os aspectos técnicos. Há desinformação em grande escala. Uma vez ratificado, o acordo será aplicado, não há dúvida. Na verdade, a dificuldade que tivemos na negociação sempre foi encontrar um alinhamento dos planetas entre o Brasil e a Argentina. Quando o Brasil estava pronto, a Argentina não estava pronta, e vice-versa. Se o Mercosul não quer ser completamente dominado industrialmente pela China, é melhor desenvolver cooperações industriais com a União Europeia. Da mesma forma, a UE também tem a preocupação de não ver sua indústria completamente destruída pela China.

P – O sr. poderia citar alguns efeitos positivos do acordo para ambos os lados?

JD – A Comissão Europeia divulgou recentemente vários estudos completos, que mostram bem os ganhos do acordo, bastante significativos. Por exemplo, os ganhos globais estão entre 0,2% e 0,4% do PIB (produto interno bruto) da União Europeia. Isso significa entre 40 e 80 bilhões de euros. Há também ganhos para o Mercosul. Os ganhos globais para a indústria são evidentes, porque a UE perdeu metade do mercado no Mercosul em 20 anos. Passou de 35% para 17%, porque a China ocupou seu lugar. Há também uma dimensão geopolítica. São países em grande parte descendentes de imigrantes de origem europeia. Temos muito em comum. Como dizia Jacques Delors [1925-2023, presidente da Comissão Europeia de 1985 a 1995], a quem servi por muito tempo, “é a concorrência que estimula, a cooperação que fortalece e a solidariedade que une”. Não ratificar esse acordo é jogar o Brasil nos braços da China.

P – A que o sr. atribui a rejeição quase unânime do acordo na classe política francesa?

JD – Existe uma mistura de incompetência e covardia. A incompetência é dominante. Essas pessoas não sabem do que estão falando, não conhecem os números. Como os sindicatos agrícolas franceses são contra, de uma forma pavloviana a maioria dos partidos políticos segue essa linha. Conheço muitos parlamentares franceses que assinaram manifestos dizendo que são contra o Mercosul e que, no privado, me disseram que, na realidade, são a favor e concordam comigo. Assim é a política, com suas grandezas e suas mesquinharias. Mais mesquinharias do que grandezas, infelizmente.

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