BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados cria uma bomba fiscal de R$ 37,5 bilhões para a União ao ampliar indenizações por defeitos na construção de imóveis financiados pelo antigo SFH (Sistema Financeiro de Habitação), além de flexibilizar as condições de repasse dos valores.
O texto é tão amplo que obriga o pagamento até nos casos em que o imóvel não existe mais o que torna impossível realizar perícia para verificar se os problemas vieram da construção original.
O Ministério da Fazenda vai tentar barrar o avanço do texto no Senado. Procurada, a pasta respondeu que a proposta “ofende os princípios estruturantes do regime orçamentário e da gestão responsável de fundos públicos”.
A estimativa de impacto foi fornecida pelo próprio ministério, com o alerta de que o valor pode ser até maior, devido à “imprevisibilidade de despesas que poderão no futuro ser elegíveis para o ressarcimento”. Técnicos do governo afirmam que o montante pode ficar acima dos R$ 41 bilhões.
O projeto foi apresentado pelo deputado Carlos Chiodini (MDB-SC) e recebeu parecer favorável do deputado Fernando Monteiro (Republicanos-PE), que fez modificações. Chiodini não respondeu à reportagem. Monteiro disse que o projeto busca facilitar os acordos com as famílias e argumentou que se trata de um “dinheiro privado” a Fazenda diz que o projeto gera despesa pública.
“Eu estou dizendo isso para você, não é [custo para o] erário”, afirmou.
O texto foi aprovado de forma simbólica (sem votação individual), com manifestações contrárias de PT, PC do B, PSOL e Novo. A votação ocorreu em 16 de julho, na mesma sessão que aprovou outra bomba fiscal de R$ 30 bilhões para favorecer o agronegócio.
A proposta obriga a Caixa Econômica Federal a indenizar milhares de famílias por defeitos na construção de imóveis financiados pelo SFH nas décadas de 1960 a 1980 e que eram protegidos por uma apólice pública de seguros, modalidade hoje extinta.
Desde 2011, essas obrigações são de responsabilidade do FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salariais), fundo público criado para regularizar passivos do antigo sistema de habitação. A administração fica a cargo da Caixa, mas o dinheiro vem do Tesouro Nacional, a partir da emissão de títulos da dívida pública.
Hoje, a Caixa acompanha cerca de 71 mil ações judiciais espalhadas pelo país, movidas por quase 500 mil autores, que cobram indenização para pagar os consertos.
O tema é cercado de polêmicas. Originalmente, as apólices de seguro cobriam a quitação do financiamento em caso de morte ou doença grave e danos materiais ocorridos após a entrega do imóvel (como uma inundação). Como os contratos já foram finalizados, a União entende que não haveria mais qualquer obrigação. Porém, trata-se de famílias em situação vulnerável, e a opção foi atendê-las em alguma medida.
Na maioria dos casos, os problemas detectados demandam reparos, mas não impedem o mutuário de continuar morando na unidade.
A exceção são os chamados “prédios-caixão”, tipo de construção empregada com maior frequência na região metropolitana de Recife (PE). Erguidos sem vigas, pilares ou concreto armado, eles têm na própria alvenaria sua estrutura de suporte e passaram a apresentar problemas, com episódios extremos de desabamento.
Desde 2014, a lei autoriza a Caixa a oferecer acordos para encerrar as disputas judiciais. A negociação segue limites fixados pelo conselho curador do FCVS, com teto de R$ 34,4 mil para a indenização (equivalente a 75% do valor estimado da condenação, que é de R$ 45,85 mil). Nos últimos anos, a média dos acordos ficou até abaixo disso: R$ 21 mil.
O projeto de lei altera as regras para, em vez de autorizar, obrigar a Caixa a oferecer os acordos. Além disso, o cálculo da indenização passa a considerar não só o valor estimado da condenação, mas também os honorários devidos a escritórios de advocacia e as custas processuais.
Técnicos do governo estimam que o custo médio da indenização saltaria a R$ 101 mil quase cinco vezes o que é pago atualmente. Parte disso seria absorvida pelos advogados.
No caso dos prédios-caixão, 202 empreendimentos de alto risco foram incluídos em uma primeira leva de acordos para os mutuários comprarem uma nova casa. O pagamento médio ficou em R$ 120 mil por família o equivalente a 75% do custo de uma unidade da faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida na região metropolitana do Recife.
Outros 296 empreendimentos foram considerados de médio e baixo risco e, segundo técnicos do governo, poderiam ter sua situação resolvida com reformas pontuais. Mesmo assim, o projeto aprovado estendeu a eles uma indenização de maior valor.
O relator disse que o projeto apenas autoriza indenizações maiores. “Esse projeto não tem nada mais do que uma facilidade. Se o seu governo não quiser fazer acordo, não faz acordo”, afirmou Monteiro.
O texto ainda traz outras flexibilizações. Pela proposta, a oferta de acordo será feita “independentemente do estado atual de conservação do imóvel, da realização de reformas, expansão e da atual destinação da edificação”. Na prática, o dispositivo permite o pagamento mesmo quando a casa já foi demolida, dando lugar a igrejas, comércios e outros empreendimentos. Sobre isso, o relator disse que a maior agilidade dada pela proposta busca evitar esses casos.
O projeto também cria um novo assento no conselho curador do FCVS, que toma decisões sobre os recursos do fundo. Sob o argumento de incluir um representante dos mutuários, a proposta prevê a participação de um membro da Abradem (Associação Brasileira de Defesa dos Mutuários do Sistema Financeiro de Habitação) nas deliberações sobre seguro habitacional.
Segundo duas pessoas que acompanham os acordos judiciais em torno do tema, a Abradem não tem histórico de participação nessas negociações.
A entidade é sediada no Rio Grande do Norte e tem como um de seus representantes o advogado Marcelo Gomes. Na página de seu escritório, ele se apresenta como um profissional que “possui militância expressiva” na área de direito habitacional e um dos “pioneiros nas ações securitárias em defesa dos mutuários do SFH”.
Procurado, ele disse não saber por que a Abradem foi escolhida para representar os mutuários no conselho, embora existam outras entidades com a mesma finalidade. O relator do projeto disse que indicou a associação por ser “a maior e a que mais tem legitimidade”.
Antes de conceder entrevista, Gomes aparecia em diversos vídeos na página da Abradem no Instagram. Após a conversa com a reportagem, o perfil ficou indisponível. A reportagem questionou o advogado sobre esse fato, mas ele disse não saber a razão do ocorrido.
Na entrevista, Gomes afirmou que a associação não participou da elaboração do texto, mas defendeu sua aprovação para dar solução a processos que se arrastam há anos.
“Realmente é algo muito grave, famílias que se desfizeram por conta dessa demora. O valor econômico que as pessoas vão receber é um reparo para amenizar um pouco dessa dor, pela omissão”, disse. Para Gomes, a elevada demanda judicial decorre do alto volume de problemas habitacionais, e colocar a questão como fruto de advocacia predatória seria “muito perigoso”.
Em nota, o Ministério da Fazenda disse que o projeto cria despesa sem indicar estimativas de impacto ou fonte de custeio.
Os aportes do Tesouro no FCVS são de natureza financeira portanto, não esbarram nos limites de despesa do arcabouço fiscal ou na meta de resultado primário. Ainda assim, têm impacto direto na dívida pública do país, que vai subir se a medida avançar no Congresso.
No ano passado, o FCVS fechou o ano com um patrimônio líquido negativo em R$ 53,1 bilhões. “O projeto expõe o FCVS a uma situação de iliquidez que impossibilitará a realização dos pagamentos sob sua responsabilidade e exigirá, por conseguinte, a assunção dessa dívida pela União”, afirma a pasta.