ESPECIAL: 25 DE MARÇO-160 ANOS. O coração árabe que moldou o maior comércio popular do país
Pierre Sarruf, CEO do Rei do Armarinho. Empresa vai completar 100 anos em 2026
(Andre Lessa/Agência DC News)
Pierre Sarruf, CEO do Rei do Armarinho, simboliza a força árabe que na virada do século passado ajudou a erguer e manter a 25 de Março
Vocação mascate dos árabes ajudou milhares de imigrantes do Oriente Médio a empreender no Brasil, e hoje se espalham por todo o Brasil
Por Melina DiasCompartilhe:
[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS] Esta reportagem integra o Especial 25 de Março – 160 anos e revisita a gênese árabe da rua mais simbólica do comércio brasileiro. Muito antes de movimentar R$ 300 milhões em um único dia, a região era um trecho barato, sujeito a enchentes e pouco valorizado no Centro de São Paulo. Foi nesse território adverso que sírios e libaneses, empurrados pela instabilidade política no Oriente Médio no início do século 20, começaram mascateando no fio do bigode, criando redes de confiança e abrindo as primeiras lojas que moldariam o varejo paulistano. Entre eles está a família Sarruf, hoje na quarta geração à frente do Rei do Armarinho. “Minha família chegou sem nada e encontrou no comércio uma vida inteira”, disse Pierre Sarruf. A 25 é brasileira, embora seu coração siga árabe.
A biografia da família do comerciante Pierre, hoje com 49 anos, é talvez um dos retratos mais fiéis do papel árabe na construção da 25 de Março. A loja Rei do Armarinho, fundada oficialmente em 1926 por Afif Sarruf, que chegou ao Brasil em 1910 . Hoje Pierre é o CEO da rede quase centenária, e seu irmão Philipe, 44 anos, seria o equivalente ao CFO. Ambos, junto ao irmão Patrick, acompanharam desde meninos a transição da venda de produtos baseada na confiança, no “fio do bigode”, até os dias atuais em que o volume de negócio é ancorado nas vendas online. Na gestão ao longo do tempo, saiu a caderneta e entrou a governança corporativa. “Estou na terceira geração, mas seria a quarta, pois a família do meu avô Afif veio da Síria.” Na árvore genealógica, segundo ele, primeiro chegaram os dois irmãos mais velhos e, entre 10 irmãos, havia uma diferença de idade muito grande. “Meu avô era o caçula”, disse.
Esses irmãos adultos buscavam uma vida mais segura para o clã. Na virada para o século 20, eclodiu a Guerra Otomana que se tornou um dos principais motivos que levaram sírios e libaneses a migrarem para o Brasil. A região do Líbano e da Síria estava sob o domínio otomano desde o século 16, e a população sofria com a opressão e a exploração. A guerra, que começou em 1914, agravou a situação, levando a uma crise econômica e humanitária.
A dureza da vida levou esses imigrantes a mascatear na região da rua 25 de Março, ou seja, vender de porta em porta antes de conseguir capital para abrir um ponto fixo, afirma Sarruf. A própria origem da palavra “mascate” é tema de debate entre estudiosos. Algumas fontes a relacionam ao árabe masqat, ligado ao comércio; outras sugerem uma associação à cidade de Mascate, em Omã, tradicional centro mercantil do Oriente Médio. No século 16 os portugueses invadiram Omã, em um conflito que se arrastou até o século seguinte – um contato histórico que ajuda a explicar a circulação de termos entre as duas culturas. No Brasil colonial, a palavra se popularizou muitas vezes com conotação pejorativa – como no episódio conhecido como Guerra dos Mascates (1710-1712), reconstituído pelo historiador Evaldo Cabral de Mello em A Fronda dos Mazombos, de 1995.
Ao olhar a eclosão trazida pela cultura árabe para outros pontos do Brasil é possível afirmar a força e importância desses imigrantes para a construção nacional. E em São Paulo essas contribuições são ainda mais palatáveis. Muitas famílias árabes apesar da origem mascate se debruçaram em atividades que ultrapassam o varejo. Há expoentes no universo financeiro e bancário, na indústria têxtil e na saúde suplementar, em especial os árabes cristãos vindos das regiões hoje conhecidas como Líbano e Síria. Esse modelo de empreendedorismo, baseado em venda direta, família e reinvestimento, moldou o início do varejo paulista e serviu de base para cadeias que seguem relevantes até hoje, tanto que algumas dessas empresas ainda têm participação acionária das famílias originais. Várias delas originaram-se da venda de porta em porta, que era a principal alternativa de trabalho dos árabes quando chegavam ao Brasil.
Segundo William Adib Dib Júnior, presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, a forma de armazenar, guardar e vender os itens foi trazida da cultura sírio-libanesa. “Os itens à venda eram acomodados em malões ou carrinhos especificamente construídos para expor produtos”, disse. Anos depois, inclusive, esses locais passaram a ser chamados e reconhecidos como lojas de armarinhos, “nome, aliás, que têm até hoje alguns estabelecimentos que vendem artigos variados nas áreas populares de comércio”.
A ideia de vendas a prazo começa com os árabes que deixavam seus clientes pagarem na próxima visita do mascate
William Adib Dib Júnior, Câmara Árabe
Os árabes não resignificaram apenas o “onde armazenar”, mas também o “como vender”. Segundo Dib Júnior, uma das grandes contribuições dos árabes para o desenvolvimento foi a venda a prazo, em prestações. Com muitos deles se locomovendo em rotas regulares para vender seus produtos, geralmente permitiam que seus clientes optassem pela promessa de pagar na próxima visita. Também chama a atenção, segundo ele, que esses imigrantes originais tornaram-se empresários bem-sucedidos, migraram para outras atividades além do comércio, seus filhos tornaram-se engenheiros, médicos, diplomatas, intelectuais e políticos.
As famílias fundaram instituições beneficentes, que resultaram, por exemplo, no Hospital Sírio Libanês, hoje referência. Também fundaram associações, como a própria Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, que fomenta comércio entre o Brasil e os países muçulmanos, não só os árabes, além da própria Associação Comercial de São Paulo, que presta relevante serviço ao desenvolvimento do comércio paulistano.
Importante observar o olhar de cuidado que os “patrícios”, como se autodenominam na comunidade, sempre tiveram com o investimento na educação formal de seus herdeiros. Pierre Sarruf afirmou que na adolescência ganhou um laptop do pai e a primeira coisa que fez foi “levar aquela novidade” para o pessoal que cuidava da TI do Rei do Armarinho para compartilhar e aprender. Já Jorge Dib, hoje presidente da Univinco (União dos Lojistas da 25 de Março) se orgulha de ter sido o pioneiro a colocar online um site, na época apenas com função de vitrine digital da loja de sua família, o Depósito de Meias São Jorge.
A São Jorge hoje disputa o mercado ombro a ombro com grandes marketplaces. A história do estabelecimento teve início até antes da fundação da primeira loja em 1955, quando os irmãos Feiad e Salvador vendiam meias nas feiras livres de São Paulo. O nome da empresa, inspirado na devoção da mãe, Maria, por São Jorge, remete à garra dos irmãos ao longo de mais de 50 anos de comércio. Pioneiros em vendas pela internet no Brasil, o site da São Jorge iniciou as operações em 2001, com o mesmo atendimento personalizado, oferecendo frete grátis nas compras a partir de R$ 100 com entregas via Correios e Sedex para todo o Brasil.
TERRA PROMETIDA– Considerada como o maior centro comercial da América Latina, ou como o maior shopping a céu aberto, a mais famosa rua de comércio em São Paulo recebeu mais de um nome desde o século 19, mas só entrou para a história como 25 de Março. O nome foi uma homenagem à data em que o Imperador Dom Pedro I outorgou a primeira Constituição do Brasil, no dia 25 de março de 1824.
O registro da 25, como é conhecida pelos paulistanos, foi feito em 1865. A descoberta do documento é creditada ao pesquisador Lineu Francisco de Oliveira (que terá uma reportagem só dele ao longo do Especial), no livro “Mascates e Sacoleiros”. Antes de ter esse trecho canalizado, o rio Tamanduateí corria ao lado da via, abaixo do Mosteiro de São Bento, e tinha em seu percurso sete voltas. No final da sétima volta ficava o Porto Geral, onde eram desembarcados os produtos importados que vinham do porto de Santos. O nome do Porto foi dado à conhecida Ladeira Porto Geral, uma das travessas da 25 de Março.
Nos anos 2000, o então deputado estadual Romeu Tuma Junior, filho do ex-senador Romeu Tuma, apresentou proposta de lei para renomear a via para Rua dos Árabes. O texto foi aprovado pelo prefeito de São Paulo à época, José Serra, em 2006. Hoje, “a 25”, para os íntimos, tem 1,3 km de extensão e, junto das 17 ruas que formam o circuito de compras, abriga cerca de 4 mil estabelecimentos. Segundo o Censo de 2024, da Univinco, o faturamento bruto anual da região é de R$ 14,5 bilhões. E quer mais. Um dos planos do presidente da Univinco, Jorge Dib, é implantar um circuito comercial e turístico de compras para guiar e orientar turistas vindos de todos os cantos do estado e país.
Imagem da esquina da rua 25 de Março com a General Carneiro, em frente ao Mercado Municipal em 1910 (Coleção Vincenzo Pastore / IMS)