BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – Se o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes é ameaçado com uma lei moldada para punir ditadores por sua atuação à frente do julgamento de Jair Bolsonaro (PL), integrantes do Tribunal Penal Internacional convivem com coerção americana de efeito semelhante há meses.
A diferença formal é que a administração Donald Trump usa uma legislação específica contra quatro juízas e um promotor da corte de Haia, na Holanda, que analisa crimes de guerra e contra a humanidade e não é reconhecida pelos EUA. Contra Moraes, a opção foi usar a Lei Magnitsky, desenhada para punir corrupção de Estado e violação de direitos humanos.
Em fevereiro, o presidente americano assinou um decreto afirmando que o TPI havia se envolvido “em ações ilegítimas e infundadas contra os EUA e nosso aliado próximo, Israel”. Na prática, o tribunal havia expedido no fim de 2024 ordens de prisão contra Binyamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, Yoav Gallant, seu ex-ministro da Defesa, e Mohammed Deif, comandante militar do Hamas, já morto. Os três foram acusados por graves violações na guerra Israel-Hamas.
O decreto de Trump impôs sanções ao britânico Karim Khan, promotor do TPI, e deu prazo de 60 dias para o Departamento de Estado indicar outras punições. Elas vieram em 5 de junho contra as magistradas Reine Adelaide Sophie Alapini Gansou (Benin), Solomy Balungi Bossa (Uganda), Luz del Carmen Ibáñez Carranza (Peru) e Beti Hohler (Eslovênia).
Duas delas autorizaram investigações sobre a atuação americana no Afeganistão; outras duas aceitaram a ordem de prisão contra Netanyahu.
Outra jurista que entrou na mira de Trump foi a italiana Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados. Marco Rubio, secretário de Estado, anunciou a punição em 9 de junho. “A campanha de guerra política e econômica de Albanese contra os EUA e Israel não será mais tolerada”, escreveu no X.
Dias antes, Albanese havia publicado um relatório citando mais de 60 empresas, como Microsoft, Amazon e Lockheed Martin, que estariam lucrando com a ação militar israelense em Gaza. Em suas palavras, empresas “financeiramente ligadas ao apartheid e ao militarismo de Israel”.
“É muito grave estar na lista de pessoas sancionadas pelos EUA”, declarou Albanese à agência Associated Press na semana passada. “Minha filha é americana. Eu moro nos Estados Unidos e tenho alguns bens lá. Então, é claro que isso vai me prejudicar”, disse a jurista. “O que posso fazer? Fiz tudo de boa-fé e, sabendo disso, meu compromisso com a Justiça é mais importante do que meus interesses pessoais.”
Albanese foi enquadrada pelo Tesouro americano com a mesma legislação usada contra os integrantes do TPI. A Ieepa (International Emergency Economic Powers Act) amplia os poderes da Casa Branca em caso de emergência nacional. A partir dela, outros poderes acabam sendo invocados. É, por exemplo, um dos fundamentos que Trump usa para as tarifas recíprocas que impõe a diversos países, incluindo o Brasil, desde abril.
As pessoas designadas como alvo dessas sanções não conseguem mais entrar nos EUA, assim como seus cônjuges e filhos; bens e ativos dessas pessoas que estejam nos EUA ficam bloqueados; prevê ainda punições para quem fornecer “fundos, bens ou serviços” a elas. O resultado final não é muito diferente do obtido com a Lei Magnitsky.
No caso do TPI e de Albanese, a argumentação, centrada em atos que possam prejudicar cidadãos ou empresas americanas, não é inédita. Em 2020, em seu primeiro mandato, Trump determinou ordem parecida contra qualquer indivíduo que colaborasse com os trabalhos do tribunal, então engajado em investigações relacionadas à atuação americana no Afeganistão. Centenas foram afetados pela decisão, revogada no governo Joe Biden.
Trump reabilitou sua legislação com novas regras, que ampliam seu alcance. Acadêmicos e ativistas que fazem trabalho de pesquisa e suporte para a Promotoria do TPI entraram na Justiça americana neste ano. Alguns postulantes notam abuso de poder da administração federal, outros sublinham que a legislação não prevê troca de informações como motivo para punição, apenas o fornecimento de fundos, bens e serviços.
Contatado pela Folha de S.Paulo, um porta-voz do TPI declarou que a corte não faria comentários sobre a atuação americana contra o tribunal ou contra Moraes. Em junho, quando as punições às juízas foram anunciadas, a corte emitiu comunicado dizendo que as “medidas constituem uma tentativa clara de minar a independência de uma instituição judicial internacional que opera sob o mandato de 125 Estados-membros de diversas partes do mundo”.
“Visar aqueles que trabalham pela responsabilização não ajuda em nada os civis presos em conflitos. Isso apenas encoraja aqueles que acreditam que podem agir com impunidade.”
Para Albanese, as sanções “foram calculadas para enfraquecer” o seu trabalho. “Vou continuar fazendo o que tenho que fazer”, declarou a relatora da ONU.