BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O MME (Ministério de Minas e Energia) autorizou a contratação, com preço acima da média, de uma usina que tem como acionista um sobrinho de Gilberto Kassab -presidente do PSD e padrinho político do ministro da pasta, Alexandre Silveira. O negócio renderá uma receita anual de R$ 1,89 bilhão pelo menos até 2040.
A energia virá do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Santa Catarina -composto por usinas a carvão com capacidade total instalada de 740 MW (megawatts), praticamente o mesmo que uma das 20 turbinas de Itaipu. O valor a ser pago ficou 62% acima do cobrado em média por geradoras que usam o mesmo combustível fóssil.
De acordo com documentos analisados pela reportagem, obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, a dona do complexo, Diamante Energia -empresa de Pedro Grünauer Kassab-, teve ao menos 25 reuniões com o MME desde o começo de 2023 até a conclusão do processo.
O ministério afirma que seguiu o exigido por lei, que as decisões se basearam em critérios técnicos, que o processo passou por duas consultas públicas e que o tema foi avaliado também por agências reguladoras.
Procurada, a Diamante Energia afirmou que o caso foi concluído após três anos de procedimentos técnicos e que os critérios para cálculo do preço estão fixados em lei, foram definidos pelas autoridades competentes e auditado por grandes consultorias independentes.
“É importante deixar claro que não houve qualquer influência política no preço. O custo da usina é majoritariamente do carvão, vendido por mineradoras sem vínculo com investidores da empresa, e diferenças se explicam por fatores técnicos e estruturais da usina, que não pode ser comparada a outras unidades em localidade com condições geológicas e logísticas distintas”, afirma a empresa.
A compra de energia da usina catarinense se tornou obrigatória por uma lei de 2022 (14.299), criada pelo Congresso por meio de um “jabuti” -jargão político para propostas sem ligação com o tema original do projeto. O texto foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), e o MME ficou responsável pelo processo de contratação ao lado da estatal EPE (Empresa de Pesquisa Energética), ligada à pasta, e da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Pela lei, o valor pago à usina precisaria ser suficiente para cobrir os custos. Para as contas serem feitas, o processo passou por discussões com participação da empresa em reuniões fechadas e também em consulta pública.
Os dados usados para identificar quais seriam os custos da usina -e, por consequência, a remuneração-, foram fornecidos, em sua maioria, pela própria Diamante. Membros da pasta defendem que a estatal não tinha expertise para fazer o cálculo por conta própria e, por isso, houve dependência dos números apresentados pela empresa privada.
Entre os custos informados pela Diamante, está a necessidade de um investimento total de R$ 2,7 bilhões no complexo. Além disso, foram incluídas despesas anuais fixas com operação e manutenção de pelo menos R$ 302,7 milhões. Também entraram na conta despesas da empresa com pesquisa e desenvolvimento, depreciação e impostos.
A lei que obrigou a contratação havia exigido uma receita fixa suficiente para cobrir custos associados à geração, incluídos custos com combustível, custos operacionais e remuneração do custo de capital.
Depois de uma primeira versão do relatório da EPE sobre o preço a ser pago à usina, a Diamante pediu alterações em reunião com o MME e a estatal. O ministério encaminhou formalmente um documento com as solicitações à EPE, que refez o estudo ajustando os números.
No ofício, enviado pelo MME a pedido da reportagem, a pasta opina a favor da empresa em certos pontos (como custos de operação e manutenção, apontados pela companhia) e contra ela em outros (como o tipo de cálculo de rentabilidade a ser usado).
Como resultado das decisões iniciais, o preço de energia considerado pela EPE subiu de R$ 536,35/MWh para R$ 564,37/MWh. A alteração nesse momento, de 5%, foi equivalente a uma receita anual extra de R$ 93 milhões ao empreendimento.
Houve recomendação da área técnica para que os dados da Diamante fossem auditados por uma empresa independente. A Diamante contratou a Promon Engenharia e a EY (Ernst & Young). Procuradas, a Promon não se manifestou e a EY disse que prestou serviço de consultoria e não de auditoria (que seria um processo mais rígido). A participação das duas empresas foi aceita para validar os valores fornecidos.
Ainda assim, a EPE apresentou diferentes ponderações sobre os valores ao longo do documento. Ressaltou, por exemplo, que não é sua atribuição fiscalizar a real execução dos investimentos informados pela Diamante.
Em outro ponto, a EPE reproduz relato da EY dizendo que “nenhum processo de due diligence [investigação e análise detalhada] ou outros processos de verificação foram realizados pela EY”, que “não foram feitas verificações independentes sobre a integridade e a precisão das informações disponibilizadas pela Diamante” e que “a EY também não conduziu nenhuma inspeção física dos ativos”.
Após a conclusão do relatório da EPE, o processo foi encaminhado a duas consultas públicas conduzidas pelo MME. No total, a Diamante teve a maioria de suas contribuições aceitas pela pasta: de 30 sugestões da companhia, 17 foram acolhidas total ou parcialmente.
Entre os pontos concedidos à empresa estão uma nova mudança nos cálculos de custos, aval para exportar energia e autorização para que a verificação da energia entregue ocorra a cada três anos (e não anualmente).
O preço da energia do complexo termelétrico, de R$ 564,37/MWh, ficou 62% mais caro do que a média observada em leilões de energia de usinas a carvão. Também ficou acima de praticamente todos os demais tipos de geração, de acordo com análise da própria EPE.
A aprovação da minuta final do contrato foi assinada por Silveira e publicada há menos de um mês no Diário Oficial da União.
A reportagem ouviu de uma pessoa que acompanhou parte do processo relatos de pressão sobre a equipe técnica do governo e a avaliação de que o preço ficou alto. Outras três pessoas que participaram da consulta pública expressaram estranhamento. Uma delas afirmou, sob anonimato, que não achou o processo normal pela quantidade de pleitos da Diamante atendidos e pela aceitação de números enviados pela empresa já no início das discussões.
John Wurdig, gerente de transição energética do Instituto Arayara (voltado à causa ambiental), afirma que o grau de atendimento à empresa e a representantes do setor do carvão chamou atenção. “Isso nos surpreendeu bastante. A Diamante deu as cartas, isso ficou nítido. Inclusive todas as contribuições estão em sigilo nos processos do MME e da EPE”, diz.
A Arayara participa no STF (Supremo Tribunal Federal) como “amigo da corte” (amicus curiae, figura que oferece informações e subsídios ao tribunal) em uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade) de PSOL, Rede e PSB que questiona a lei. Os autores afirmam, entre outros pontos, que a lei contraria a Constituição por violar o princípio da impessoalidade e compromissos ambientais do Brasil.
O relator do caso no STF é o ministro Gilmar Mendes, que pediu manifestações do governo. A ministra Marina Silva (Meio Ambiente) se posicionou nos autos dizendo “concordar fortemente com os argumentos […] quanto à inconstitucionalidade da referida lei”.
O Ministério do Meio Ambiente também disse ao STF que a lei vai na contramão do Acordo de Paris, aprovado pelo Congresso, ao contratar mais combustíveis fósseis sem um plano de abatimento da emissão de gás carbônico. Ressalta ainda que os acordos internacionais se sobrepõem à lei existente, “devendo haver alinhamento de decisões subsequentes afetas ao tema”.
Já o MME se posicionou pela validade da lei. Integrantes da pasta afirmam que não podiam se posicionar de forma diferente no STF porque o ministério, no governo anterior (de Bolsonaro), já tinha se posicionado a favor, tanto na época de análise de sanção presidencial como em uma manifestação na mesma ação no próprio STF.
Hirdan Costa, colaboradora na Arayara, afirma que o MME perdeu a oportunidade de se alinhar ao MMA no assunto e barrar a contratação da usina a carvão. “Poderia, por exemplo, ter um projeto para revisitar essa lei e readequar à nova NDC brasileira [meta climática assumida perante o mundo], que foi feita pelo novo governo Lula”, diz.
Após ser procurado pela reportagem, o MME enviou documentos complementares ao processo mostrando a discussão técnica das decisões e disse que a estrutura da pasta, formada por servidores de carreira, é blindada contra interferências políticas. Afirmou também que atuou para barrar no Congresso outros jabutis que elevariam ainda mais os valores.
Além disso, disse que o preço do carvão na região de Santa Catarina, principal componente de preço, é mais alto que em outros lugares e que esse valor foi calculado pela ANM (Agência Nacional de Mineração), sendo depois homologado pela Aneel.
Procurada pela reportagem, a ANM afirmou que “não tem atribuição para definir o preço do carvão mineral nas usinas termelétricas”, mas que foi consultada pela Aneel para fornecer informações sobre os estudos apresentados pela Diamante. Disse ainda que, ao fim do processo, o preço estabelecido para o combustível ficou em R$ 406,38 -abaixo do proposto pela empresa, de R$ 484,57.
O MME reafirma que o processo passou por duas consultas públicas, uma para termos do contrato e outra para o preço, e que todas as contribuições recebidas “foram analisadas pelos técnicos da pasta, com explicitação das motivações de seu acatamento ou indeferimento”.
“Além disso, no processo administrativo de regulamentação da lei, como é praxe ao formulador de política pública, o MME recebeu em reuniões representantes da empresa Diamante Energia, outorgados do complexo -da mesma forma que recebe os demais agentes do setor”, diz o MME.
Procurada, a EPE afirmou que “atua de forma técnica e independente, cumprindo seu papel no processo conforme as normas e diretrizes vigentes, sem qualquer influência política”.
Gilberto Kassab afirmou que “nunca atuou em assuntos relacionados ao tema ou à empresa e desconhece completamente as informações apresentadas pela reportagem, não tendo, portanto, condições de se manifestar”.
O Complexo Termelétrico Jorge Lacerda começou a operar em 1965 e ampliou sua capacidade ao longo do tempo. Em agosto de 2021, foi vendido pela Engie à Diamante Energia -empresa de um fundo (Fram Capital Energy II Fundo de Investimento em Participações Multiestratégia) com metade das cotas em nome dos filhos de Grünauer Kassab, que também figura como sócio administrador da Diamante. A outra metade é da família do empresário Jorge Nemr.
Dois meses depois da compra, em dezembro de 2021, a Câmara aprovou o projeto que determina especificamente a compra de energia da usina. A emenda em prol do complexo foi apresentada pelo deputado federal Ricardo Guidi (então no PSD-SC e hoje no PL-SC), aceita pela relatora Geovania de Sá (PSDB-SC) no mesmo dia e votada em plenário momentos depois. Na semana seguinte, o Senado também aprovou e o texto foi a sanção.
Com o texto, os parlamentares obrigaram o país a comprar energia do empreendimento por 15 anos usando como justificativa a necessidade de preservar empregos da indústria do carvão em Santa Catarina e fazer uma “transição energética justa”, para não interromper repentinamente a economia do combustível fóssil. Os 15 anos de fornecimento terminam em 2040, mas outro “jabuti” ainda em tramitação no Congresso estende esse e outros contratos de usinas a carvão até 2050.