SEUL, CHEONAN E HWASEONG, COREIA DO SUL (FOLHAPRESS) – Logo após a entrada do Memorial Nacional do Governo Provisório Coreano, em Seul, um paredão chama a atenção. A escultura, que toma uma lateral inteira do prédio, simboliza as diversas mudanças pelas quais a Coreia do Sul passou nas últimas décadas. Em forma de onda, busca exibir o país como um fluxo contínuo.
A preservação da memória é uma das marcas dos sul-coreanos, que nesta sexta-feira (15) celebram os 80 anos do fim do regime colonial japonês, uma cicatriz relembrada por vários museus e instituições sobre o tema.
Rever os 35 anos de domínio nipônico, uma história de exploração e brutalidade, é também uma maneira de entender como a Coreia do Sul foi da monarquia à república e de uma das nações mais pobres do mundo a um país rico. Durante essa trajetória, ainda enfrentou um conflito com o Norte após a Segunda Guerra.
Ainda que esses museus busquem ao final uma leitura mais ampla da história sul-coreana, o foco está nos independentistas. Não à toa o Memorial Nacional foi inaugurado há três anos em um 1º de março, data dos protestos fortemente reprimidos em 1919 que levaram à criação do governo provisório coreano na China.
No museu, é possível ver cópias de documentos como a proclamação da república, além de fotos e roupas do grupo que, do exterior, ajudava operações secretas de ativistas da independência. Há, ainda, instalações modernas, com projeções e peças de arte cinética que reiteram a ideia de uma Coreia em movimento.
O memorial fica ao lado da prisão de Seodaemun, cuja data de construção, em 1908, mostra que o domínio nipônico já estava em curso havia anos -a anexação formal ocorreu apenas em 1910. Ao longo de 33 anos, 9.000 independentistas foram detidos ali, e 493, assassinados, incluindo Yu Gwan-sun, de apenas 17 anos, considerada a ativista mulher mais importante do 1º de Março e conhecida como a “Joana d’Arc da Coreia”.
As instalações feitas de tijolinhos, com espaços para execuções, solitárias e trabalhos forçados, guardam semelhanças sombrias com o campo de concentração nazista de Auschwitz, só que Seodaemun foi aberta décadas antes, e sua arquitetura, de prédios dispostos de maneira radial, vem dos EUA e do Reino Unido.
Depois do fim do domínio japonês, a penitenciária ainda seria usada por mais 42 anos, durante as ditaduras que lideraram a Coreia do Sul até 1987, e no período a detenção foi ocupada por ativistas pró-democracia.
As dimensões da Seodaemun, que foi ampliada várias vezes, e do Memorial Nacional, um edifício brutalista de quase 10 mil m², contrastam com locais históricos menores que também guardam casos marcantes da anexação. A igreja Jeam-ri, em Hwaseong, tornou-se um símbolo da repressão nipônica após os protestos do movimento 1º de Março na cidade incendiarem uma delegacia de polícia e um escritório dos japoneses.
A reação veio em 15 de abril de 1919, quando 11 soldados prenderam na igreja suspeitos de participarem das manifestações por independência e atearam fogo no local. Pelo menos 23 pessoas foram mortas, entre as quais crianças. “Apenas a suspeita de participar do movimento já era motivo para o Japão oprimir essas pessoas. Por isso a Jeam-ri tem um significado particular”, afirma Lee Yang Hee, curadora do memorial.
Das instituições que preservam a memória do regime colonial, o Independence Hall of Korea, em Cheonan, é a que mais se aprofunda nas razões que levaram ao domínio japonês e nos pilares independentistas. Em seis grandes galerias, o museu mostra aspectos como a exploração da agricultura local e a participação de estrangeiros na busca de libertação, além da encenação de ações importantes da luta por independência.
Foi possível encontrar muitos militares jovens vendo as exposições -os uniformizados recebem uma folga se forem ao museu, o que pode servir de estímulo à visitação, além, claro, do conhecimento sobre a história do país. Curiosamente, um capítulo militar crucial para o fim do regime colonial, a Segunda Guerra, é abordado só de raspão no Independence Hall e em outros museus do tema, todos recheados de tintas patrióticas.
Lee Myung-Hwa, diretora do Instituto de Estudos dos Movimentos Independentistas, destaca que o museu traz os esforços feitos pelo movimento de independência junto a nações estrangeiras e que documentos de colaborações de Estados Unidos e Reino Unido ainda estão sendo incorporados aos arquivos da instituição, mas pouco explica por que a derrota do Japão para os Aliados não apresenta grande protagonismo ali.
Retratar a importância da Segunda Guerra é inescapável no Museu Nacional de História Contemporânea Coreana, já que, além de viabilizar a expulsão dos nipônicos, o conflito que desaguou na Guerra Fria também dividiu a Coreia entre o Norte comunista, de influência russa e chinesa, e o Sul capitalista, ligado aos americanos -o edifício que abriga o centro cultural está localizado ao lado da embaixada dos Estados Unidos em Seul.
A diferença ali em relação a outros museus é o foco no que ocorreu no período pós-colonial: a Guerra da Coreia, os episódios marcantes do processo de democratização -como o massacre de Gwangju, retratado pela vencedora do Nobel de Literatura Han Kang em “Atos Humanos”-, as reformas econômicas e a Olimpíada em 1988 como demonstração de que o país iniciava uma nova era, além do estrondoso fenômeno cultural do país.
Han Soo, diretor do museu, ressalta que o objetivo da instituição vem mudando, pois a Coreia do Sul é cada vez mais conhecida pela cultura, e essa disseminação de produções obviamente gerou uma série de filmes baseados nos ativistas que lutaram contra o Japão, como “Harbin”, sobre o herói nacional Ahn Jung-geun.
Assim como sugere a escultura no Memorial Nacional, essas obras acabam ligando o passado e o presente do país. Não é estranho então que hallyu, termo que designa a explosão cultural coreana, signifique onda.