SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Semanas antes de o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, então líder da missão da ONU no Iraque, ser morto em um ataque a bomba em Bagdá, o atual diretor-geral do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), Pierre Krähenbühl, esteve no local do atentado, que completa 22 anos nesta terça-feira (19).
O motivo da visita à sede das Nações Unidas no país era justamente um ataque a trabalhadores humanitários dias antes. “Um colega do CICV havia sido morto em um tiroteio perto do sul de Bagdá”, afirma. O atentado que matou Vieira e deu origem ao Dia Mundial Humanitário foi um choque para a comunidade de trabalhadores do setor, segundo Krähenbühl.
Olhando retrospectivamente, os acontecimentos de 2023 lhe parecem um prenúncio do que ocorre atualmente em termos de segurança a esses profissionais. “Nesse meio tempo, parece que fomos empurrados para níveis ainda mais catastróficos da perda de vidas de trabalhadores humanitários”, diz.
Com 265 trabalhadores assassinados até esta segunda-feira (18), 2025 caminha para ser o ano mais mortal já registrado para o setor -atualmente, a marca pertence a 2024, quando 281 funcionários foram mortos enquanto prestavam serviços.
A alta é puxada pela guerra em Gaza, onde mais de 500 humanitários foram mortos desde o início do conflito entre Israel e Hamas, em outubro de 2023, de acordo com o Aid Worker Security Database.
Krähenbühl hesita em usar números -“por trás deles estão pessoas que, com muita coragem, dedicaram suas vidas a esse trabalho”, diz-, mas reconhece que os últimos balanços dão uma dimensão do atual desprezo às regras do direito internacional humanitário. “É o símbolo de uma tendência de deterioração”, afirma.
Esse conjunto de normas, também conhecido como direito da guerra, foi desenhado pelas Convenções de Genebra, que aconteceram de 1864 a 1949, e outros tratados internacionais que visam proteger civis, combatentes e o ambiente com o conflito já em curso.
De acordo com esses textos, o pessoal, as unidades e os transportes de assistência devem ser respeitados e protegidos para que as vítimas continuem contando com atendimento ao longo do conflito.
“Há cada vez mais desrespeito a essas regras fundamentais”, afirma Krähenbühl. “Isso ilustra uma interpretação altamente permissiva do direito internacional humanitário. Às vezes, as pessoas podem achar que é inevitável que isso aconteça, […] mas essas perdas, tanto de trabalhadores humanitários quanto de civis, são evitáveis.”
A despeito dos números alarmantes, ele vê a comunidade internacional -em que sempre encontrou grande solidariedade em relação aos trabalhadores humanitários- “quase entorpecida, dessensibilizada”, em suas palavras. O pano de fundo de seu relato é o enfraquecimento do arcabouço internacional criado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que tenta evitar outro conflito de tamanha magnitude.
“O sistema multilateral criado na época foi muito criativo e muito dinâmico porque tinham acabado de sobreviver à maior calamidade que os seres humanos já haviam infligido a si mesmos. Tinham visto tudo, desde o Holocausto até Hiroshima”, diz Krähenbühl ao defender essas ferramentas legais. “Simplesmente respeitar as regras existentes faria uma enorme diferença para salvar vidas.”
Atualmente, o mundo tem o maior número de conflitos desde a Segunda Guerra, e cada um impõe desafios diferentes ao trabalho humanitário, segundo o diretor do CICV. A Guerra da Ucrânia, por exemplo, mostra o que ocorre quando Estados vão a uma guerra no século 21, com enorme uso de novas tecnologias e um número elevado de pessoas desaparecidas.
Gaza, por sua vez, é “um dos eventos mais perturbadores e chocantes” já vistos, segundo ele. “Se isso for permitido pela comunidade internacional, então temos de ficar muito preocupados com o futuro da humanidade, porque é simplesmente intolerável que tais níveis de violações e horrores estejam ocorrendo, afetando civis, detidos e reféns”, afirma.
Em seus 30 mais anos de carreira, Krähenbühl diz ter visto poucos conflitos serem resolvidos militarmente -e, nesse sentido, saudou a entrada do Brasil em uma iniciativa do CICV para impulsionar o compromisso político com o Direito Internacional Humanitário, no ano passado, ao lado de China, França, Jordânia, Cazaquistão e África do Sul.
“Muitas vezes, ouço políticos e diplomatas dizendo que nunca mais falarão com o outro lado”, afirma. “É exatamente quando o conflito começa que você precisa de mais diálogo. […] A maioria dos conflitos finalmente terminou por meio de um caminho negociado. Se ele vai terminar assim, você precisa que os canais de diálogo permaneçam abertos.”