SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A divisão da herança do banqueiro e empresário Rodolfo Marco Bonfiglioli acabou em uma batalha judicial entre dois irmãos com acusações mútuas, que incluem ocultação de patrimônio e negligência com o pai, numa ação que tramita na 9ª Vara da Família e Sucessões de São Paulo.
Bonfiglioli faleceu aos 98 anos, no dia 6 de setembro de 2024, às 16h47, no hospital Albert Einstein. Menos de uma hora depois, às 17h36, o filho Alberto Bonfiglioli Neto assinou, de forma digital, uma procuração para o escritório Yarshel Advogados ajuizar a abertura de inventário do pai. A ação foi protocolada no mesmo dia.
Filho de imigrantes italiano, Rodolfo herdou os negócios do pai, o comendador Alberto Bonfiglioli, como o Banco Auxiliar, a Companhia Industrial de Conservas Alimentícias, mais conhecida pelo extrato de tomate do elefantinho da Cica, e empreendimentos imobiliários, entre eles o próprio Jardim Bonfiglioli, na zona oeste da capital paulista.
Nos autos do processo de inventário ao qual a Folha obteve acesso, Cláudia Bonfiglioli acusa o irmão Alberto Bonfiglioli Neto, que desde 2018 administra o conglomerado de empresas da família com a interdição de Rodolfo, de ter ocultado patrimônio mediante a criação de uma rede de empresas capitaneada por uma holding, a Palms.
Alberto refuta. “Todo o patrimônio do espólio foi devidamente declarado e documentado nos autos do inventário, sob fiscalização do juízo competente”, afirma o advogado de Alberto, Gustavo Pacífico em uma entrevista por email.
Fundadora e presidente da Casa Hope, instituição filantrópica que apoia crianças e adolescentes com câncer em São Paulo, Cláudia conta que, como fruto de uma cultura machista enraizada entre os Bonfiglioli, assim como as suas irmãs ela permaneceu alienada dos rumos das empresas do pai.
No processo de interdição de Rodolfo, em 2018, Alberto foi designado como o único curador, enquanto a esposa e as três filhas foram contempladas com mesada de R$ 70 mil por mês para cada.
Distante dos negócios, Cláudia aponta que o irmão se beneficiou da curatela para forjar dívidas deixadas pelo pai em operações de empréstimos e vendeu fazendas, louças de pratas e obras de artes de artistas como Cândido Portinari e Tarsila do Amaral.
Com relação aos quadros, ela afirma que o acervo deixado pelo banqueiro estava avaliado em quase R$ 22,5 milhões e que, de acordo com uma transportadora, Alberto já havia retirado “dois contêineres cheios de obras de artes”.
De fato, a DRB, do grupo Granero Transportes, cobra do espólio em uma outra ação no Tribunal de Justiça uma dívida de R$ 1.292.047,36, em valores atualizados até março deste ano.
A empresa celebrou contrato com Alberto em janeiro de 2022 e cobrava uma mensalidade de R$ 59.380,10 para transporte e armazenagem de bens. Alberto, segundo a transportadora, deixou de arcar com as prestações em dezembro de 2023.
“Cumpre esclarecer que o Inventariante [Alberto], no período de fevereiro de 2023 a junho de 2024, retirou diversos bens de propriedade do senhor. Rodolfo do armazém da DRB, bens esses de valores elevadíssimos, sob alegação de que iria vendê-los para arcar com despesas do inventariado [Rodolfo] e, principalmente, para efetuar o pagamento das mensalidades do serviço de armazenagem”, escrevem os advogados da transportadora.
À Folha de S.Paulo Pacífico nega que Alberto tenha retirado dois contêineres, como acusou Cláudia, e diz que o filho obteve autorização judicial para venda do acervo à época da interdição para custear o tratamento de saúde do pai.
“[Cláudia] jamais demonstrou qualquer preocupação com a saúde de seu pai, especialmente após a interdição, tampouco colaborou com a junta médica”, escreveu Pacífico ao rebater as primeiras declarações de Cláudia.
Ao contrário dos R$ 22,5 milhões indicados por Cláudia, os advogados de Alberto afirmam que as obras somam R$ 22,5 mil, de acordo com que Rodolfo declarava em seu Imposto de Renda. “O valor de mercado atual é desconhecido, e o espólio não possui liquidez para custear a avaliação”, diz Pacífico.
Para Cláudia, a quantia de R$ 22,5 mil é “uma ofensa à inteligência alheia”.
Pelas suas contas, Cláudia estipula que Rodolfo deixou um patrimônio de quase R$ 1 bilhão –ao somar R$ 705 milhões com vendas de propriedades e R$ 234 milhões em créditos recebidos pelo banco Auxiliar em 2021.
Já Alberto, como inventariante, apresentou em uma planilha que o valor a ser partilhável é de R$ 42.812.746,90 –isso é, após descontar o passivo de R$ R$ 17.869.193,77 deixado pelo pai.
Desse montante, a viúva Maria Helena teria direito a R$ 21.406.373,45, o equivalente a 50% da herança, e os quatro irmãos, Alberto, Cláudia, Sandra e Silvana, receberiam R$ 5.351.593,36 cada.
Desconfiada dos cálculos apresentados pelo irmão, Cláudia encomendou relatórios da empresa de consultoria Kroll e da Montax, sediada no Rio de Janeiro e que se apresenta como especialista em investigações patrimoniais.
Para Pacífico, trata-se de “relatórios elaborados unilateralmente, sem caráter conclusivo, que não refletem a realidade patrimonial do espólio”.
O levantamento feito pela Kroll, anexado nos autos do processo, aponta que a Palms Holdings, constituída em São Paulo em outubro de 2023, tornou-se desde 2024 sócia de três empresas relacionadas ao grupo Bonfiglioli: Coirmãos Participações S.A, Albon Participações Ltda e Incremento Empreendimentos e Reflorestamento S.A.
A Palms Holdings está sob o controle do Fundo Palms, constituído em setembro de 2023 e possui um único acionista, registrado como não residente em território nacional, segundo dados da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). A Kroll, no entanto, diz que não conseguiu identificar a real identidade do acionista.
Ao juiz, Cláudia e seus advogados Flávio Lucas de Menezes Silva e Renato Borelli Valentim apresentam alguns indicativos na tentativa de associar a Palms a Alberto. Entre os pontos levantados, a Albon Participações, antes de ser controlada pela Palms, pertencia a Alberto.
Já a Coirmãos, também sob controle da Palms, incorporou a Pansul, constituída em 1978, no dia 5 de setembro, um dia antes da morte de Rodolfo. É a Coirmãos, inclusive, a única controladora da Freedom Holding Imobiliária, que em dezembro de 2024 negociou um antigo imóvel da família, a fazenda São Marco, em Itupeva (SP), por R$ 350 milhões.
Ao ser incorporada pela Coirmãos, a Pansul detinha dez fazendas, entre elas a São Marco, um terreno e dois sítios avaliados, segundo a Kroll, em R$ 518.692,04.
Intermediadora da venda da fazenda São Marco, a Freedom é administrada por Nilson Marques Junior, funcionário de confiança dos Bonfiglioli, tido como braço direito de Alberto e nomeado por Rodolfo como o seu testamenteiro.
Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, Nilson afirma que foi diretor estatutário do grupo Bonfiglioli por vários anos e manteve relacionamento profissional com membros da família. “Após a transferência do controle acionário da holding, passou a atuar como administrador estatutário em empresas controladas pela Palms”, diz a nota.
“O executivo refuta integralmente as acusações feitas por Cláudia Bonfiglioli e por seu advogado, Flavio Menezes”, conclui a nota.
Pacífico afirma que Alberto não participou da venda da fazenda São Marco. “Nem sequer teve conhecimento, uma vez que já não pertencia havia mais de ano ao quadro de sócio da controladora”, afirma o advogado.
Para reforçar a ligação entre a Palms e Aberto, Cláudia diz ainda que ela, a sua mãe e as duas irmãs foram abordadas por Nilson com uma proposta, em nome da Palms, para comprar os direitos hereditários, pagando R$ 18 milhões à viúva e R$ 3,5 milhões para cada irmã.
“O máximo que o Nilson disse foi que a Palms pertencia a um investidor japonês muito rico. Eu pedi para ele ir embora e não assinei nada. A minha mãe e as irmãs aceitaram vender seus direitos”, afirma Cláudia.
À Folha de S.Paulo Pacífico afirma que Alberto não possui qualquer relação com a Palms e que, assim como a mãe e as irmãs, ele recebeu proposta de venda dos direitos hereditários.
“O Alberto optou por não vender a sua parte no inventário. Ele não pode responder pelo direito ou qualquer ato de terceiro. De toda forma, as partes envolvidas são maiores e capazes, e o direito é disponível, podendo ser negociado no interesse das demais herdeiras”, diz Pacífico.
O advogado Evandro Rafael Morales, que representa Maria Helena, Sandra e Silvana, escreveu à reportagem que as suas clientes não irão se pronunciar.
Outra divergência, apontada por Cláudia, é o fato de Alberto não ter arrolado nos autos o montante de R$ 234.843.542,81, liberados pela União ao Banco Auxiliar em 2021, ao final de uma ação de execução.
“Nessa época, o meu pai estava interditado e o Alberto representava o Auxiliar perante as negociações com o Banco Central e a Procuradoria. Mas ele se esqueceu que, pelo testamento do meu pai feito em 2006, eu recebi ações do banco”, diz Cláudia.
Fundado em 1942 pela família Bonfiglioli, o Banco Auxiliar funcionou até novembro de 1985, quando foi liquidado pelo Banco Central e teve bens e dinheiros bloqueados para sanar débitos com seus correntistas.
Mais de 20 anos, exatamente em 2021, o Auxiliar, representado por Nilson, conseguiu extinguir a execução fiscal e celebrou celebrou junto à Procuradoria da Fazenda Nacional acordo judicial denominado “Negócio Jurídico Processual”.
Pelo acordo, o Auxiliar S.A. reconheceu a existência de uma dívida da ordem de R$ 964.906.675,35 e este valor foi retirado do montante de R$ 1.211.753.096,12, que já havia sido depositado em juízo pelo grupo em uma das execuções fiscais.
O saldo, de R$ 234 milhões, foi transferido no dia 8 de março de 2021 para uma conta bancária do advogado Marcos Joaquim Gonçalves Alves, conhecido por ter atuado na defesa de Eduardo Cunha (MDB-RJ) e que representou o Auxiliar na ação.
Segundo o advogado de Alberto, o inventário trata apenas de bens de titularidade do falecido Rodolfo. “Operações de empresas das quais ele era acionista não fazem parte do objeto do inventário, conforme recentemente registrou o próprio juiz do inventário”.
Em despacho na segunda-feira (10), o juiz Walter Chacon Cardoso determinou que “nestes autos serão partilhados os bens deixados na data do óbito”, e as demais questões, como por exemplo, a venda de fazendas e de quadros, assim como os R$ 234 milhões pagos ao Auxiliar, devem ser resolvidas em ação própria. “O inventário não comporta litígio”, definiu Cardoso.
Menezes e Borelli prometem ajuizar ações cíveis e criminais.