SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O ministro Luiz Fux, do STF (Supremo Tribunal Federal), adotou postura garantista diferente do perfil punitivista empregado em outras ações como juiz, avaliam especialistas ouvidos pela Folha.
Eles também interpretam que o voto do ministro pedindo a nulidade da ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pode, no futuro, reacender o debate jurídico sobre a competência do Supremo.
Nesta quarta-feira (10), o magistrado fez um discurso duro sobre a atuação do STF no caso e discordou de pontos levantados pela PGR (Procuradoria-Geral da República).
Esses pontos foram, no geral, validados pelos dois ministros que já votaram na ação, Alexandre de Moraes e Flávio Dino. Se condenado nesse julgamento, o ex-presidente Jair Bolsonaro pode pegar mais de 40 anos de prisão e aumentar a inelegibilidade, que atualmente vai até 2030.
Ao votar nesta quarta, Fux falou sobre a nulidade da ação em razão de o julgamento se dar no Supremo. O magistrado argumentou que, como Bolsonaro já não é mais presidente, isso deveria ocorrer em instância inferior.
Fux afirmou que a Constituição é “claríssima” a esse respeito. Ele também disse que, se o julgamento ficasse, ainda assim, no Supremo, deveria ocorrer diante de todo o Plenário, para não silenciar as vozes de outros ministros.
Para Diego Nunes, professor de direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), a questão da competência já foi decidida pelo Supremo, e uma reversão é pouco provável.
Ele diz que o argumento do ministro teria sentido se não houvesse texto do regimento do STF que puxa a competência para a corte em razão de a ação penal se originar de inquéritos que teriam como alvo o próprio Supremo.
“A doutrina tende a concordar com Fux, mas até agora isso não teve eco no tribunal. O STF já mudou essa questão da competência muitas vezes. Tornar o dissenso público pode levar a uma nova mudança no futuro. Agora não parece que irá prosperar”, diz Nunes.
Outra justificativa sobre a competência ser da corte seria que Bolsonaro era presidente quando os crimes teriam começado.
Welington Arruda, mestre em direito e justiça pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa), afirma que o voto de Fux representa uma divergência importante no STF.
Ele afirma que, se a maioria acompanhar Fux na percepção sobre a competência, o processo poderia ser anulado e remetido para a primeira instância.
“Já se a maioria rejeitar a preliminar, o julgamento seguirá no mérito e poderá culminar em condenação. Mesmo havendo condenação, a defesa poderá apresentar recursos [como embargos de declaração] e utilizar o voto divergente de Fux para sustentar futuras contestações”.
Raquel Scalcon, professora da FGV Direito SP, afirma que o entendimento do STF sobre competência não deve mudar no momento, em razão da composição atual da corte. Eventual modificação de entendimento no futuro, entretanto, é possível.
Para os professores de direito da UENP (Universidade Estadual do Norte do Paraná) Juliana Izar Segalla e Marcos César Botelho, o voto de Fux ao sustentar a remessa do processo à primeira instância “não se harmoniza com a jurisprudência consolidada do próprio STF nem com a função constitucional da Corte como guardiã da Constituição”.
Eles afirmam que a presença de corréu com mandato, o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), atrai a competência para a corte. Dizem, ainda, que os fatos em apuração são atentados contra o Estado brasileiro e que o “o STF já afirmou, em diversos julgados, que compete à Corte agir de forma firme na defesa da ordem constitucional”.
Eles também citam o contexto internacional como uma “camada de gravidade”, em referência a pressões externas vindas dos Estados Unidos. “Submeter tais questões a um juiz de primeira instância -sem as salvaguardas institucionais de que dispõe o STF- apenas ampliaria a vulnerabilidade do processo a interferências indevidas, em prejuízo da independência judicial”, apontam.
No julgamento, Fux votou pela absolvição total de Bolsonaro, inclusive nos crimes contra a democracia. Ele também disse não entender ser possível enquadrar a conduta dos réus como organização criminosa armada e disse que não há provas nos autos de que os réus julgados tenham ordenado a destruição do 8 de Janeiro.
O magistrado também defendeu a suspensão de todos os crimes contra Alexandre Ramagem e falou sobre a importância de que os atos dos acusados sejam perfeitamente enquadráveis nos crimes previstos em lei.
Para Raquel Scalcon, o ministro recorreu no voto a vários estudiosos que defendem um direito penal garantista para sustentar suas teses. “Penso que as teses, em si, estão bem articuladas. O que chama a atenção, contudo, é o fato de que as posições defendidas nesse voto não guardam clara coerência com o histórico de suas posições [de Fux] sobre temáticas similares ao longo dos anos”.
Ela destaca uma postura mais punitivista do magistrado em outros momentos, como em posicionamento a favor da prisão em segunda instância na Lava Jato e a favor de liberar o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira ao Ministério Público.
Diego Nunes concorda com a percepção sobre mudança de perfil. Como exemplo, ele afirma que Fux é o ministro que menos concede habeas corpus no STF. “Ou seja, tem [normalmente] perfil pouco garantista. O voto desta quarta parece fora da curva com sua história no tribunal’.
Nunes explica que garantismo seria uma postura rígida de respeito a direitos e garantias, com uma atuação restritiva. Já o punitivismo seria uma postura mais flexível sobre direitos e garantias, com ação expansiva do direito penal.
“O ministro Fux, em outros momentos, foi associado a posições mais rigorosas, com perfil punitivista em matéria penal. Mas, nesse julgamento, seu voto foi marcado por uma postura claramente garantista: ele enfatizou a competência adequada do juízo e a necessidade de assegurar plena defesa diante do volume de provas”, concorda Welington Arruda.
Para Juliana Izar Segalla e Marcos César Botelho, o comportamento de Fux causou estranheza “pelo fato de que foram incoerentes com sua própria atuação até agora na corte. Ele nunca se mostrou ‘garantista’, pelo contrário, sua postura sempre foi diversa da demonstrada hoje”, dizem.