Com discurso a militares, Trump aprofunda culto à personalidade e politização das Forças

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há quase 75 anos, no dia 4 de outubro de 1951, o presidente Harry S. Truman tomou uma decisão impopular, mas que é vista hoje por historiadores como uma das mais sábias de seu mandato: ele demitiu o general Douglas MacArthur, o comandante das tropas americanas e das Nações Unidas na Guerra da Coreia.

Em resposta a falas públicas de MacArthur criticando os objetivos do governo na guerra, o presidente retirou o militar do seu posto. Anos mais tarde, em frase que se tornou célebre, Truman disse: “Eu demiti [MacArthur] porque ele não queria respeitar a autoridade do presidente. Eu não o demiti porque ele era um filho da puta imbecil, o que era verdade, mas isso não é ilegal para generais”.

O episódio é relembrado como um dos momentos cruciais para a relação civil-militar na história dos Estados Unidos. Ao reforçar a primazia da Casa Branca sobre um dos mais graduados comandantes militares da época, Truman reiterou o controle civil sobre as Forças Armadas e o princípio de militares apartidários que impera no país desde então.

Esse princípio, entretanto, sofreu um golpe nesta terça-feira (30), quando Donald Trump cobrou lealdade ideológica em discurso a centenas de oficiais-generais, reunidos em Washington a pedido do secretário de Defesa, Pete Hegseth.

Tendo viajado de bases americanas do mundo todo para comparecer ao evento, de presença obrigatória, os militares de alta patente ouviram Trump descrever os EUA como um país “sob invasão por dentro, não diferente de um inimigo interno”, e dizer que cidades nos EUA serão “campos de treinamento” para as Forças Armadas -que, segundo Hegseth, devem voltar a enfatizar a letalidade.

“O sucesso da relação civil-militar americana se baseia essencialmente em uma espécie de acordo”, afirma Bret Devereaux, historiador militar da Universidade Estadual da Carolina do Norte. “As Forças Armadas concordam em não interferir na política, os políticos concordam em não arrastar as Forças Armadas para a política, e o povo concorda em colocar os militares em um lugar de honra e estima, enquanto durar esse acordo. A [reunião desta terça] é um claro momento de ruptura dessa tradição.”

“Trata-se de um momento sombrio na história americana quando o presidente reúne oficiais-generais e declara sua intenção de entrar em guerra com cidades que votaram contra ele, que é o claro significado das palavras que usou. Resta-nos apenas torcer para que, quando esse momento acabar, parte da antiga relação civil-militar possa ser recuperada”, conclui Devereaux.

O episódio é mais um na série de eventos de grande repercussão que reforçaram o culto à personalidade que vem sendo construído por Trump desde antes de chegar à Casa Branca pela segunda vez. Uma vez de volta ao poder, o presidente continuou a lançar projetos com seu nome: em janeiro, divulgou a criptomoeda $TRUMP, que já rendeu mais de US$ 350 milhões (R$ 1,8 bilhão) em vendas para investidores. Em fevereiro, anunciou a criação do visto de residência permanente nos EUA “Trump Gold Card” -que custaria US$ 1 milhão (R$ 5,3 milhões).

Além de enxergar uma ênfase problemática na imagem do presidente nesses itens, críticos do governo levantam a possibilidade de corrupção e tráfico de influência, no qual empresários gastam grandes quantidades de dinheiro em troca de acesso à Casa Branca -em pelo menos um caso, em maio deste ano, 200 pessoas que investiram na criptomoeda foram convidadas para um jantar exclusivo com Trump.

O episódio que mais preocupou analistas aconteceu em junho e também envolveu as Forças Armadas, quando os EUA realizaram um desfile militar pela primeira vez em décadas, ostensivamente comemorando os 250 anos da formação do Exército americano.

A celebração, entretanto, aconteceu no mesmo dia do aniversário de Trump, em 14 de junho, levantando preocupações sobre a identificação pessoal do presidente com os militares e comparações a outros países democráticos que viram um líder carismático chegar ao poder e construir um regime autoritário -como aconteceu com a Venezuela de Hugo Chávez, que se transformou em ditadura sob seu sucessor, Nicolás Maduro.

Embora tenham biografias muito diferentes -Chávez, militar que construiu base de apoio nas Forças Armadas venezuelanas e Trump, bilionário nova-iorquino sem qualquer relação prévia com militares-, os dois líderes buscaram apoio e subserviência de seus respectivos Exércitos para fortalecer seu projeto de poder.

Trump, por exemplo, já utilizou outras falas a soldados no segundo mandato para atacar o Partido Democrata. Em junho, militares reunidos para ouvir um discurso em tom de comício no Forte Bragg, na Carolina do Norte, celebraram em apoio a slogans políticos e vaiaram menções ao ex-presidente Joe Biden e ao governador da Califórnia, Gavin Newsom.

O caso também foi visto com preocupação e sinal da crescente politização das Forças promovida pelo republicano, que também usa militares da Guarda Nacional como ponta de lança de sua campanha contra a criminalidade em grandes centros urbanos governados por democratas.

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