SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Exército do Sudão confirmou nesta segunda-feira (27) sua retirada da cidade de Al-Fashir, no estado de Darfur do Norte, após o grupo paramilitar RSF tomar a região por meio de bombardeios e ataques terrestres que, segundo agência internacionais, miram civis e têm indícios de motivação étnica.
A queda de Al-Fashir marca o fim da presença militar sudanesa em Darfur, uma das principais regiões do país -de tamanho próximo ao da França-, palco de alguns dos episódios mais violentos da guerra civil que se arrasta pelo terceiro ano.
A cidade, cercada há 18 meses pelas Forças de Apoio Rápido (RSF) com ataques aéreos e incursões terrestres, foi o último bastião do Exército na região e resistiu, segundo relatos locais, sob constante cerceamento do trânsito de civis e seu consequente agravamento da situação de insegurança alimentar.
De acordo com organizações humanitárias, as RSF mataram civis que tentavam fugir e realizaram massacres sistemáticos. A milícia, por sua vez, nega repetidamente realizar ataques contra civis e trata a conquista como uma “grande vitória pela liberação de Al-Fashir”.
O Laboratório de Pesquisa Humanitária da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, analisou imagens de satélite da região e afirmou haver indícios de corpos espalhados próximos a uma barreira de terra construída pelos combatentes para isolar a cidade.
Segundo o grupo, a cidade “parece estar em um processo sistemático e intencional de limpeza étnica das comunidades indígenas não árabes Fur, Zaghawa e Berti, por meio de deslocamento forçado e execução sumária”. Isso incluiu o que pareciam ser “operações de limpeza porta a porta”.
Vídeos compartilhados por ativistas nas redes sociais mostram homens desarmados sendo baleados a curta distância e dezenas de corpos ao lado de veículos queimados. O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos afirmou ter recebido “diversos relatos alarmantes” de assassinatos de civis, incluindo pessoas mortas enquanto tentavam atravessar as linhas do cerco. O chefe do órgão, Volker Türk, afirmou que a cidade vive um risco crescente de “violações e atrocidades motivadas por questões étnicas”.
O general Abdel Fattah al-Burhan, chefe do Exército e líder de fato do país, disse em pronunciamento que a retirada de suas forças teve como objetivo “poupar os cidadãos e o restante da cidade da destruição”. Na prática, ele reconheceu que as tropas foram derrotadas e que os combates com as RSF, por sua vez, tornaram impossível a permanência militar na região.
Segundo a Organização Internacional para as Migrações, mais de 26 mil pessoas fugiram apenas no último final de semana. A organização Médicos Sem Fronteiras informou que ao menos mil chegaram feridas a acampamentos próximos da cidade, muitas delas em estado grave.
O conflito, iniciado em abril de 2023 por uma disputa de poder entre Burhan e o comandante das RSF, Mohamed Hamdan Dagalo, já matou dezenas de milhares de pessoas. Estudos independentes estimam entre 150 mil e 400 mil mortes desde abril de 2023 -contagens mais conservadoras confirmam cerca de 40 mil. Outras 14 milhões foram forçadamente deslocadas devido aos combates em áreas urbanas.
As acusações contra as RSF, tanto por organizações internacionais quanto pelo próprio governo sudanês, somam-se a um histórico de violência étnica na região. O grupo surgiu das milícias árabes Janjaweed, responsáveis pelo genocídio de Darfur nos anos 2000, quando cerca de 300 mil pessoas foram mortas. Em janeiro deste ano, os EUA voltaram a tachar as ações do grupo como genocídio, ao citar assassinatos de homens e meninos com base em etnia e violência sexual sistemática contra mulheres.
O governo sudanês acusa os Emirados Árabes Unidos de abastecer as RSF com drones, artilharia e outros armamentos usados na ofensiva em Darfur e nos últimos dois anos de conflito, algo que Abu Dhabi nega. Segundo autoridades de Cartum, os envios também teriam contribuído para o avanço paramilitar em Al-Fashir.
Organizações humanitárias locais afirmam ainda que o cenário atual na região seria o estágio final de um novo genocídio em Darfur. A poeta sudanesa Emi Mahmoud faz parte da Rede de Deslocados Internos de Darfur e afirma nunca ter havido um fim na matança no país. Ela relatou ao jornal britânico The Guardian ter visto “valas e trincheiras cheias de corpos de amigos, vizinhos e familiares”.
Com a conquista de Al-Fashir, as RSF controlam agora as cinco capitais estaduais da região de Darfur e, com isso, ampliam sua influência no oeste do país. Analistas apontam que o próximo foco dos combates pode ser a região central de Kordofan, rica em petróleo, onde o Exército sudanês tenta manter rotas estratégicas para o restante do país.
Há, com isso, um risco ainda maior de fragmentação territorial. Dagalo, o chefe das RSF, declarou em abril -quando o conflito completou dois anos- a instauração de um governo paralelo. Desde então, ele e seus grupos aliados o declaram presidente e líder legítimo do Sudão.