SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A primeira semana do julgamento da trama golpista se encerrou monocórdica e laudatória. O enfado causado pelos discursos já foi explicitado nos bocejos dos ministros da Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal). As homenagens prestadas a eles, porém, ainda causam espécie.
Os advogados dos réus não economizaram superlativos para elogiar os magistrados. Tampouco foram comedidos em ostentar o repertório cultural e terminaram por mobilizar referências tão díspares quanto Gonçalves Dias, Lewis Carroll –e a própria sogra.
Entre elogio e histrionismo, o comportamento dos defensores não foi desprovido de método. Em suas sustentações orais, eles demonstraram receio perante a corte, administrando as reações dos ministros com gentilezas. Do mesmo modo, a tematização da vida privada só refletiu a intenção de politizar o julgamento, a fim de criar um ambiente de cordialidade.
Especialista em direito penal da FGV, Luisa Ferreira afirma que, embora seja comum um cumprimento no início da sustentação oral, o tom elogioso adotado pelos defensores é de fato inusual. “Eles estavam com medo de falar mal do STF, porque sabem que os ministros estão sendo muito atacados e estão na defensiva”, diz Ferreira. “Acho que a pior estratégia da defesa dos réus seria continuar no ataque.”
Demóstenes Torres, defensor do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, gastou 21 minutos, quase um quarto do tempo total, para relembrar a trajetória dos magistrados.Torres, ex-senador que teve o mandato cassado em 2012, chamou o ministro Cristiano Zanin de ídolo e declarou profunda admiração a Cármen Lúcia.
Já Cezar Bitencourt, advogado de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), contou que Luiz Fux era “sempre saudoso, sempre presente, sempre amoroso, sempre atraente, como são os cariocas”. Ouvindo tamanha deferência ao colega, Flávio Dino até brincou, afirmando “não aceitar menos do que isso”.
Embora reconheça ali uma estratégia, Ferreira, a especialista da FGV, diz que os elogios não devem influenciar os votos dos ministros. “Respeito funciona, ataque prejudica e elogio funciona pouco”, afirma ela. Em paralelo, os defensores protagonizaram momentos histriônicos nos dois primeiros dias de julgamento, a começar por Torres, dizendo que levaria cigarros para Bolsonaro na cadeia.
Já Paulo Renato Cintra, defensor de Alexandre Ramagem, foi alvo de reprimendas de Cármen, gerando constrangimento no tribunal. A ministra repreendeu-o por tratar voto auditável e voto impresso como sinônimos. A presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) lembrou, então, que as urnas eletrônicas já são auditáveis há quase três décadas.
“Um julgamento dessa importância é o momento ideal para passar alguns recados. Eu entendo que a ministra não falou para o advogado, mas para quem estava vendo pela TV”, diz Ferreira.
Aos olhos da audiência na TV e na internet, Andrew Farias, que trabalha para Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa de Bolsonaro, talvez tenha ensejado o maior número de memes.
Durante a sustentação oral, Farias resolveu mostrar erudição, lendo o “Poema Em Linha Reta”, de Fernando Pessoa, “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias (“Sou bravo, sou forte, sou filho do Norte”), e o diálogo entre Alice e Humpty Dumpty, de “Alice Através do Espelho”, continuação de “Alice No País das Maravilhas”, de Lewis Carroll.
As citações de Farias não se restringiram ao mundo literário. Ele não poupou nem mesmo a sogra, lembrando uma frase sua: “As palavras são como um punhal”.
Vice-presidente do IASP (Instituto dos advogados de São Paulo), Marina Araujo conta que, em um cenário de menos sustentações orais, esses defensores poderiam ter usado melhor o tempo. “Precisamos prezar pela objetividade. É preciso falar o que está nos autos. Os ministros são cultos, eles não precisam que os advogados citem artistas”, afirma Araujo.
Mas, para ficarmos nas referências culturais, o comportamento dos advogados lembra uma ideia basilar da sociologia brasileira. Autor do livro “Sérgio Buarque de Holanda e a Dialética da Cordialidade”, o professor da ESPM Paulo Ramirez afirma que a postura dos defensores diante do Supremo tem muitas características do homem cordial, conceito desenvolvido por Buarque de Holanda no clássico “Raízes do Brasil”, de 1936.
Apesar do nome, cordialidade nada tem de positivo. Na origem etimológica da palavra, cordial é quem age com o coração. Buarque de Holanda entendeu que a tendência emotiva e afetuosa do brasileiro serviu, ao longo do tempo, à dissimulação de situações de conflito e ao apaziguamento de violências.
Para tanto, sempre foi comum o emprego de um discurso carismático, de uma eloquência afetiva e a adoção de um comportamento hipócrita. Na primeira semana do julgamento da trama golpista, a citação à sogra e os elogios excessivos foram bem representativos da ideia de cordialidade, diz Ramirez. Os advogados tentaram estabelecer vínculos afetivos e pessoais com os ministros para minimizar as acusações.
“O julgamento de Jair Bolsonaro e da cúpula golpista representa uma tentativa de usurpação das instituições democráticas”, diz o especialista da ESPM. “É uma eloquência afetiva que tenta amenizar o que foi uma tentativa de golpe de Estado no Brasil.” A cordialidade também se aplica ao discurso bacharelesco, que simula uma erudição, com citações a vários escritores.
“Vivemos em uma sociedade que vive de diplomas, mesmo que a pessoa em questão não tenha tido uma formação tão adequada assim”, afirma Ramirez.
O “falar difícil”, que já havia sido criticado por Oswald de Andrade uma década antes da publicação de “Raízes do Brasil”, foi usado, historicamente, para conferir autoridade aos detentores da palavra. Durante o julgamento, diz o professor, Cármen Lúcia rompeu com qualquer insinuação conciliatória ao tomar a palavra de Paulo Renato Cintra, advogado de Ramagem.
“Cordialidade tem muito a ver com autoritarismo, no caso fingir que não existiu uma tentativa de romper com a democracia brasileira”, diz Ramirez. Em outras palavras, o dia 8 de janeiro de 2023, segundo o professor, não foi uma obra escrita por Lewis Carroll.