SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As condições de militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e de jornalista costumam ser apontadas como causas para a ditadura prender Vladimir Herzog –cuja morte, após sessões de tortura na sede do DOI-Codi, em São Paulo, completa 50 anos neste sábado (25).
Se ambas as características parecem ter sido mesmo preponderantes na perseguição a Vlado, há ao mesmo tempo um outro aspecto pouco explorado e que pode ter contribuído para sua prisão e assassinato: o antissemitismo.
Nascido em 27 de junho de 1937 em Osijek (na então Iugoslávia, hoje Croácia), Herzog se mudou com a família para o Brasil aos 9 anos, em 1946. Naturalizou-se brasileiro. Era judeu, mas nunca foi religioso.
A ditadura inventou que Herzog tinha cometido suicídio, farsa que seria desmascarada a começar pela recusa em enterrá-lo em um local à parte, como manda a tradição judaica em relação aos suicidas.
Um dos elementos que reforça a tese do antissemitismo como fator a ser considerado na morte de Herzog é a postura do comandante do DOI-Codi em 1975, o então tenente-coronel Audir Maciel, revelada em uma entrevista anos depois.
“Hoje, ninguém sabe que ele era um jornalista como outro qualquer. Associou-se a sua pessoa uma figura de grande renome. Prêmio Vladimir Herzog -para um judeu, apátrida, que nem brasileiro era”, disse Maciel ao projeto “História Oral do Exército”, num volume publicado em 2003.
A entrevista de Maciel é mencionada pelo jornalista Marcelo Godoy, repórter especial do jornal “O Estado de S. Paulo”, em seus livros “A Casa da Vovó”, sobre a história do DOI-Codi, ganhador do prêmio Jabuti em 2015, e “Cachorros”, lançado no ano passado, sobre a saga de um militante comunista que virou espião a serviço dos militares.
Em “Cachorros”, Godoy lista mais elementos sobre o antissemitismo da ditadura. Como uma declaração do comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, -citada originalmente por Paulo Markun em “Meu Querido Vlado”- durante audiência com o cardeal dom Paulo Evaristo Arns. O militar sugeriu um pacto contra a pornografia e dizia que revistas do tipo eram publicadas por editoras de judeus.
Ou um informe de 1976 do DOI -depois da morte de Herzog, portanto- relatando que oficiais do Exército eram “reiteradas vezes interpelados por companheiros de farda sobre a presença de judeus em organizações comunistas” e que havia uma divergência entre agentes da repressão e superiores a esse respeito.
Segundo o documento, argumentava-se que “os judeus, mundialmente conhecidos como elementos voltados exclusivamente para as finanças, em busca de lucro ávido e incessante, seriam as últimas pessoas a esposar a ideologia marxista”. Agentes da repressão discordavam: “Acontece que os meios de comunicação do Ocidente estão nas mãos das organizações judaicas, interferindo em todas as comunidades e no processo cultural de cada país”.
O informe -analisado pelo professor de sociologia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Michel Gherman num artigo em 2021- lista 56 judeus comunistas, diz que “o risco de tê-los no país somente aumenta nesses tempos”, que “deve ser motivo de preocupação […] que o judeu comunista existe, encontrando-se infiltrado” e “agindo em todos os setores da sociedade brasileira” e que “não se pode menosprezar a suposição de judeus comunistas agindo como espiões em benefício a países da Cortina de Ferro”.
Godoy lembra as raízes históricas do antissemitismo no Exército brasileiro. “Durante o Estado Novo, judeus eram barrados na Escola Militar do Realengo. Houve quem se batizou para poder seguir a carreira militar, como Moyses Chaon. Ele saiu aspirante em 1941 e esteve na FEB como um dos 60 militares judeus que compuseram a Força Expedicionária Brasileira.”
Embora se refira a “indícios fortes de que o antissemitismo estava presente na comunidade de segurança do país [durante a ditadura], além do que seria esperado na sociedade daqueles anos”, o jornalista considera difícil responder se tal estado de coisas poderia ter suscitado uma ordem para pesar a mão contra Herzog.
“Seria necessário conhecer melhor Pedro Mira Grancieri [o agente que o torturou Vlado]. E saber se o fato de Herzog ser judeu fez com que ele fosse mais cruel em sua ação naquele sábado [dia do assassinato]. Ou ainda qual o efeito do pensamento de Maciel em seus comandados nesse ponto específico.”
Um dos grandes jornalistas brasileiros das últimas décadas, o também judeu Alberto Dines (1932-2018) sempre suspeitou dessa possibilidade. Num debate sobre Herzog em 2005, afirmou: “[…] sabia também que a morte de um jornalista judeu não era casual, quer dizer, era um pressentimento meu […]. Eu não tenho uma comprovação, mas não consigo separar o fato de eu saber que ele era judeu, quer dizer, há alguma relação”.
Na mesma conversa, o jornalista Rodolfo Konder (1938-2014), preso e torturado pela ditadura no DOI-Codi junto com Herzog, emendou: “[…] o Vlado era judeu e os fascistas sempre são antissemitas. Então, eu acho que uma das razões por que eles perderam o controle e bateram com ódio foi porque o Vlado era judeu também. Essa foi uma das razões”.
Num seminário realizado em 2014 na UFRJ intitulado “Judeus, militância e resistência à ditadura”, Dines citou alguns judeus e judias vítimas da repressão, como Ana Rosa Kucinski, Mauricio e André Grabois (pai e filho), Chael Schreier, Gelson Reicher, Pauline Philipe Reischtuhl e Yara Iavelberg -além de Vladimir Herzog.