SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O empresário Sidney Oliveira, dono da rede de farmácias Ultrafarma, e o diretor estatutário do grupo Fast Shop Mario Otávio Gomes foram alvos de prisão temporária na manhã desta terça-feira (12) durante a Operação Ícaro, deflagrada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP). A ação mira desarticular um esquema de corrupção que teria movimentado mais de R$ 1 bilhão em propinas pagas a auditores fiscais da Sefaz-SP (Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo).
Também foi alvo de prisão temporária o supervisor da Diretoria de Fiscalização (DIFIS) da Sefaz-SP, Artur Gomes da Silva Neto, apontado como principal operador do esquema. Segundo o MP, em troca de propina, ele fazia e aprovava pedidos irregulares de créditos de ICMS.
A prisão temporária pode ser mantida por até cinco dias.
A Fast Shop informa que ainda não teve acesso ao conteúdo da investigação e está colaborando com o fornecimento de informações às autoridades competentes. A Ultrafarma e as defesas dos investigados presos foram procuradas, mas não houve manifestação até a publicação deste texto.
A ação foi conduzida pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Delitos Econômicos (Gedec) e teve apoio da Polícia Militar. Segundo Roberto Bodini, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, há outras empresas varejistas envolvidas, mas os nomes ainda não podem ser divulgados para não atrapalhar as investigações.
Duas contadoras também estão sendo investigadas e sofreram mandados de busca e apreensão por auxiliar os auditores fiscais. Não há mandado de prisão para elas. O auditor Marcelo de Almeida Gouveia, suspeito de participação secundária, foi preso em São José dos Campos (SP) e alvo de busca e sequestro de bens. Foram apreendidos US$ 10 mil em espécie, R$ 330 mil em espécie e milhões em criptomoedas.
Segundo a Promotoria de Justiça, em Mato Grosso, na casa de um dos investigados -Celso Éder Gonzaga de Araújo- e de sua esposa, foram apreendidos mais de R$ 1,2 milhão e dois sacos de pedras preciosas, incluindo esmeraldas. O casal é acusado de colaborar na lavagem de dinheiro e teve sua prisão decretada pela Justiça.
Além dos mandados de prisão, os agentes cumpriram 19 mandados de busca e apreensão em endereços residenciais dos alvos e nas sedes das empresas investigadas. Está sendo apurada a participação de outros auditores fiscais da Sefaz-SP no esquema.
O mecanismo de créditos de ICMS permite às empresas abaterem o imposto pago na compra de mercadorias e insumos, evitando a cobrança em cascata ao longo da cadeia produtiva. A empresa registra o valor do ICMS na nota fiscal de compra e, na apuração mensal, esse valor é subtraído do ICMS devido nas vendas.
Segundo Marcelo John, sócio da área tributária do escritório Schiefler Advocacia, o procedimento padrão é manter o crédito acumulado para abater futuros débitos de ICMS. Contudo, em certos casos o montante de crédito pode demorar anos para ser consumido, afetando o fluxo de caixa da empresa.
Em São Paulo, os contribuintes podem solicitar à Sefaz-SP a recuperação do crédito acumulado por meio de um procedimento administrativo. Esse pedido depende de autorização prévia do Fisco, que realiza uma análise detalhada para verificar a regularidade cadastral, a consistência das escriturações fiscais, a legitimidade dos créditos e a legalidade das operações envolvidas.
Apenas após essa avaliação, a Sefaz-SP pode aprovar, total ou parcialmente, a utilização do crédito acumulado. “Esse procedimento visa garantir que apenas créditos legítimos sejam recuperados, protegendo a arrecadação do estado e assegurando o direito do contribuinte”, afirma John.
O esquema de corrupção investigado na Operação Ícaro teria começado em maio de 2021, e visava liberar esses créditos tributários para as empresas investigadas.
Segundo o advogado criminalista Anderson Almeida, a manipulação ilegal de créditos tributários é uma prática comum em esquemas de sonegação, onde notas fiscais falsas ou a corrupção de agentes fiscais são usadas para validar abatimentos indevidos, desvirtuando o propósito do crédito de ICMS e transformando-o em uma ferramenta para a evasão fiscal.
COMO FUNCIONAVA A FRAUDE
Segundo o MP-SP, Artur Gomes da Silva Neto orientava as empresas fraudadoras sobre a documentação necessária para pedir ressarcimento de créditos de ICMS, corrigindo os papéis, quando preciso. Com os documentos e o certificado digital da empresa em seu poder, ele próprio fazia o pedido e autorizava o pagamento do crédito tributário.
Para isso, era utilizado o mecanismo de substituição tributária de ICMS, e o auditor ajudava as empresas a receber o ressarcimento mais rapidamente.
Substituição tributária é uma forma de cobrar de forma concentrada, de um único contribuinte, todos os impostos de uma cadeia inteira de produção.
Filipe Carra Richter, sócio de tributário e aduaneiro do Veirano Advogados, afirma que, para o Estado, é muito difícil fiscalizar o recolhimento do imposto em cada uma das etapas das cadeias de produção e, para simplificar e facilitar, concentra-se a tributação em um único ponto.
Para fazer esse cálculo de qual será o imposto devido no futuro são feitas diversas presunções sobre o que acontecerá com o produto, como a margem de valor agregado, a base de cálculo presumida etc. Eventualmente, essas hipóteses não se concretizam ou ocorrem com um montante menor do que o previsto. Isso pode gerar um crédito para a empresa.
A empresa que quita os impostos tem direito a receber uma parte do dinheiro de volta, mas isso pode demorar. Segundo o MP, “a verificação pelo Fisco dos créditos de ressarcimento de ICMS em relação aos quais o contribui pretende se beneficiar é procedimento extremamente complexo, que, em geral, demora meses, ou mesmo anos, para ter sua a análise realizada”.
De acordo promotor do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) João Ricupero, no entanto, o auditor da Fazenda liberava créditos maiores que os devidos.
“A gente encontrou documentos em que as empresas falam qual o valor apurado por elas e do lado tem o valor que foi efetivamente conquistado, deferido pelo fiscal. São valores muito maiores. O que faz todo sentido, porque o que ele recebia de propina estava também ligado a uma porcentagem da diferença que ele conseguisse apurar entre o valor que a empresa apurasse e ele conseguia verificar. Então ele sempre apurava valores maiores para conseguir também um valor de uma quantia de propina maior”, diz.
Além disso. a Promotoria afirma haver documentos em que o fiscal atestava às empresas que o procedimento não seria revisado internamente pela Sefaz-SP.
O promotor de Justiça Roberto Boldini afirma que esse ponto será apurado junto à Secretaria da Fazenda, para esclarecer como o servidor tinha autonomia para realizar todas essas etapas.
A investigação usou quebra de sigilo telemático, fiscal e bancário. Os investigadores identificaram que a empresa Smart Tax, registrada em nome da mãe de Artur Gomes da Silva Neto, passou a receber milhões de reais da Fast Shop a partir do segundo semestre de 2021 pela assessoria de pagamentos de créditos tributários.
Em valor bruto, de acordo com a Receita Federal, o valor supera R$ 1 bilhão.
O MP-SP considera a Smart Tax uma empresa de fachada, pois não tinha funcionários e era formalmente representada pela mãe do fiscal, que não possui experiência técnica para prestar serviços tributários. Segundo Boldini, a empresa superfaturava valores para o ressarcimento de créditos tributários.
A evolução patrimonial da empresa foi o ponto de partida da investigação.
“Até o ano de 2021, ela declarou um patrimônio de cerca de R$ 411 mil no Imposto de Renda dela. No ano de 2023, ela declarou um patrimônio de R$ 2 bilhões. Então, isso seria um saldo patrimonial que indicava a prática de lavagem de dinheiro”, afirma Ricupero.
A empresa, cuja sede é a residência de Silva Neto em Ribeirão Pires (Grande SP), onde foi cumprido o mandado de busca e apreensão, não tinha qualquer atividade operacional ou carteira de clientes até junho de 2021.
A promotoria de Justiça afirma que o mesmo serviço prestado para a Fast Shop era prestado para a Ultrafarma. Não foi informado qual o valor movimentado pela Ultrafarma.
“Um dos objetivos da operação de hoje é conseguir especificar como eram feitos esses pagamentos”, afirma o promotor Ricupero.
Segundo o promotor, Sidney Oliveira e Mário Otávio Gomes trocavam diretamente emails com a empresa de fachada e com o auditor fiscal.
FAZENDA INSTALA AUDITORIA
Em nota, a Sefaz-SP afirma que está à disposição das autoridades e colaborará com os desdobramentos da investigação do Ministério Público por meio da sua Corregedoria da Fiscalização Tributária (Corfisp).
“Enquanto integrante do Cira-SP -Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos- e diversos grupos especiais de apuração, a Sefaz-SP tem atuado em diversas frentes e operações no combate à sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e ilícitos contra a ordem tributária, em conjunto com os órgãos que deflagraram operação na data de hoje”, diz o comunicado.
A Sefaz-SP afirma ainda que instaurou procedimento administrativo para apurar, com rigor, a conduta do servidor envolvido e que solicitou formalmente ao Ministério Público do Estado de São Paulo o compartilhamento de todas as informações pertinentes ao caso.
O Sinafresp, sindicato que representa os auditores fiscaus, publicou nota oficial repudiando veementemente o ato denunciado, afirmando que não condiz com a conduta da maioria dos profissionais. “Defendemos investigação rigorosa e a devida responsabilização dos envolvidos”, disseram no comunicado.
O MP-SP afirma que o esquema é resultado de uma “estrutura criminosa organizada” e que a investigação envolveu meses de trabalho, análise de documentos, quebras de sigilo e interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça.
Os alvos poderão responder por corrupção ativa e passiva, organização criminosa e lavagem de dinheiro. As penas podem ser superiores a dez anos de prisão para cada envolvido.