LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Democracias são regimes em que se perdem eleições. A frase de Adam Przeworski, decano dos cientistas políticos, enfatiza que nada é mais normal e saudável para os regimes de liberdade que a alternância de poder.
Há, no entanto, derrotas e derrotas. Não é exagero dizer que o mundo seria outro se Kamala Harris não tivesse perdido para Donald Trump nas eleições de 5 de novembro de 2024.
A candidata do Partido Democrata faz uma anatomia de seu fracasso no livro “107 Days” (107 dias, em tradução livre), lançado no final de setembro nos Estados Unidos. A obra é escrita em forma de diário de campanha.
Confiante na vitória até o último momento, Kamala compara sua derrota a uma zebra na final do Super Bowl, principal evento esportivo dos Estados Unidos. “Só que não era um jogo de futebol. Era nosso país. Nossa democracia. Nossa liberdade”, escreve ao final do capítulo mais dramático do livro.
Memórias de políticos devem ser lidas nas entrelinhas. Um profissional de eleições, que vive da aprovação da opinião pública, escolhe cuidadosamente o que revelar e o que esconder mas na escrita sempre revela algo daquilo que quer esconder.
A Kamala Harris que emerge do livro é uma política obstinada e ambiciosa, que sempre encarou a Vice-Presidência como plataforma para um voo ainda mais alto.
Um assessor de Kamala, o advogado Tony West, também seu cunhado, preparou em 2023 uma lista de tarefas caso a vice-presidente precisasse assumir repentinamente a cadeira de Joe Biden, então com 80 anos. O procedimento usual nos EUA ficou conhecido internamente como “Red Files” (arquivos vermelhos).
A lista incluía discurso de posse, plano de transição e telefonemas para chefes de Estado de outros países. Quando Biden tropeçou nas palavras e teve lapsos de memória num debate contra Trump, em 27 de junho de 2024, West disse a Kamala que era o momento de atualizar os “red files”. Ela designou quatro assessores para tocar a tarefa.
Biden levou quase um mês para desistir da candidatura, sob intensa pressão do Partido Democrata. Kamala teve apenas 107 dias para convencer o eleitorado de que se preparou a vida toda para o cargo.
Depreende-se do livro, a começar pelo título, que essa foi uma das razões de sua derrota. Como os brasileiros puderam ver nos casos de Marina Silva em 2014 e de Fernando Haddad em 2018, candidaturas de última hora dificilmente prosperam.
Kamala também se queixa do tratamento que recebeu da Casa Branca enquanto foi vice-presidente. Ela cumpriu missões espinhosas nas áreas de imigração e direitos reprodutivos, avalia que se saiu bem, mas seus feitos não foram propagados e as críticas não foram rebatidas.
Na sua visão, em vez de preparar um candidato para o futuro, o Partido Democrata preferiu evitar que a vice fizesse sombra ao presidente.
Um capítulo do livro é dedicado ao comercial mais famoso da campanha de Trump. Imagens insinuavam que Kamala usaria o dinheiro do contribuinte para pagar cirurgias de redesignação de gênero para presidiários. No final aparecia o slogan: “Kamala is for they/them. President Donald Trump is for you”. (“Kamala é para elus. O presidente Donald Trump é para você.”)
Kamala admite no livro que a divisão entre “nós” e “elus” propagada por Trump foi eficiente. Ela não poderia rebater o comercial, por mais infame que fosse, dada sua longa e conhecida militância pró-LGBTQIA+.
Kamala é filha de imigrantes, uma indiana e um jamaicano, ambos professores universitários e ativistas. Como lembra em “107 Days”, ela frequentava manifestações com seus pais ainda no carrinho de bebê. O slogan de Trump apontava para uma realidade evidente: os dois candidatos não poderiam espelhar polos mais divergentes na guerra cultural.
A ex-vice teve pouco tempo para propagar suas ideias e não foi apoiada devidamente no partido, mas seu fracasso, o primeiro em uma carreira vitoriosa, talvez possa ser reduzido a termos mais simples: o eleitor dos EUA foi chamado a optar entre duas realidades distantes, a América de Kamala e a América de Trump e escolheu a de Trump.
107 DAYS
– Preço US$ 30 (320 págs.); US$ 14,99 (ebook)
– Autoria Kamala Harris
– Editora Simon & Schuster (importado, sem previsão no Brasil)