Em seis meses, Trump lidera erosão sem precedentes da democracia dos EUA

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cerca de seis meses depois da volta de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos, analistas e estudiosos do direito avaliam que o presidente coordena uma derrocada da democracia —e que há hoje poucas instituições com capacidade ou disposição de restringir as ações do republicano em campos como imigração, orçamento, reforma do serviço público e comércio.

Ataques a Judiciário, universidades, empresas de mídia e escritórios de advocacia têm sido exitosos, para surpresa de especialistas que antes enxergavam solidez nas centenárias instituições americanas.

E boa parte dessas investidas foi sucedida por uma série de vitórias internas para Trump. Uma delas diz respeito aos acordos assinados com algumas das firmas de advogados mais tradicionais do país garantindo a prestação de serviços jurídicos gratuitos em favor de causas apoiadas pelo presidente que, do contrário, custariam US$ 940 milhões (R$ 5,2 bilhões) ao governo.

Outra vitória foi a capitulação de universidades de elite, como Columbia, em Nova York. A instituição concordou em fazer mudanças em seu departamento de estudos do Oriente Médio, expulsar alunos envolvidos nos protestos pró-Palestina e em pagar uma multa de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão) para tentar reaver verbas federais cortadas por Trump.

Para atingir esses objetivos, o presidente não teve problemas em usar todo o poder econômico, regulatório e jurídico do governo federal e forçar as instituições a ceder.

“Em seu primeiro mandato, Trump ainda operava de acordo com as normas constitucionais americanas”, afirma Ryan Enos, cientista político e professor da Universidade Harvard. “O que vemos agora é um realinhamento completo do poder do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, com graves resultados para a ordem constitucional e para a proteção das liberdades nos EUA.”

Para Enos, o país já vive uma situação que poderia ser classificada de “autoritarismo competitivo”, semelhante a países como a Hungria e a Turquia.

“O que isso significa é que, a menos que algo muito drástico ocorra, teremos eleições nos EUA. E elas acontecerão de uma maneira que será aparentemente justa. Mas, na realidade, as condições internas estarão deterioradas de tal maneira que a oposição terá dificuldade em operar. A questão é se esse estado de coisas vai se consolidar ou se é possível revertê-lo.”

Nos ataques contra a mídia e universidades, incluindo à instituição em que leciona, o professor de Harvard enxerga uma tentativa de Trump de calar ou ao menos dificultar as críticas ao governo. Já a investida contra escritórios de advocacia e juízes teria o objetivo de tirar do caminho os questionamentos jurídicos às ações do Executivo.

“O que acontece em sistemas autoritários é que quem está no poder tem acesso a muitos meios de punir rivais e recompensar aliados. Isso cria um problema coletivo: isolada, cada instituição avalia que o mais simples seria capitular, o que ajuda o líder autoritário a consolidar poder —neste caso, isso aconteceu muito rapidamente.”

Para Jamal Greene, professor de direito na Universidade Columbia e ex-funcionário do Departamento de Justiça no governo Joe Biden, as instituições americanas não estão se saindo muito bem. “A estratégia de Trump tem sido muito parecida com a que foi usada em outros lugares no mundo, como na Hungria, por Viktor Orbán, e no Brasil, por Jair Bolsonaro.”

Greene cita acordos assinados entre a Casa Branca e grandes grupos de mídia, como a Paramount, que controla a emissora CBS News, e a Disney, dona da ABC News. Em ambos os casos, as empresas cederam ao republicano após uma série de pressões. “O que explica essas capitulações é o fato de que se trata de grandes empresas dependentes do governo federal de diversas maneiras, incluindo para aprovações regulatórias”.

Para além das pressões contra empresas e universidades, existe também a visão de que, em algumas decisões, Trump tem violado a Constituição —e o Congresso e a Suprema Corte pouco fazem para contê-lo.

“O governo federal toma milhares e milhares de decisões todos os dias. Se ele não opera de boa-fé, e se ele não acredita que precisa obedecer a lei, então estamos em crise constitucional —ainda que não tenhamos visto a pior versão disso, que é quando o governo diz que não vai cumprir decisões judiciais porque acha que elas são ilegítimas”, argumenta Greene.

O órgão máximo do Judiciário americano suspendeu atos de instâncias inferiores que contrariavam Trump por meio do sistema de decisões provisórias emitidas durante o recesso da Suprema Corte. Nessa modalidade, as decisões da maioria, que é conservadora, são publicadas sem que o fundamento jurídico seja esclarecido. Especialistas ouvidos pela reportagem que preferiram não se identificar para evitar represálias dizem que a prática dificulta avaliar se a Corte tem razão ou não nas suas decisões.

Para Brandon Garrett, professor de direito constitucional da Universidade Duke, práticas como essa contribuem para um cenário de instabilidade jurídica que, por sua vez, encoraja tentativas de alterar preceitos constitucionais por meio da Suprema Corte —um círculo vicioso. “Se o direito constitucional é mais estável, as partes evitam levar certos casos à Justiça porque sabem que vão perder. Mas, se é instável, existe a avaliação de que, mesmo que o precedente exista, talvez dessa vez ele mude.”

Na opinião de Garrett, é cedo para dizer se as instituições americanas falharam no teste ao qual estão sendo submetidas. “Acho que o teste não acabou, mas isso é um fenômeno global. A democracia está sendo testada em todo o mundo de maneiras novas.” Ele também evita falar em crise constitucional nos EUA, afirmando que o governo Trump ainda não desafiou uma ordem da Suprema Corte abertamente —embora exista o temor de que o Executivo tenha deixado de cumprir ordens de instâncias inferiores.

“Quando se fala em crise constitucional, a ideia é que dois ou mais Poderes da República não conseguem se entender, e a Constituição está sendo violada por causa disso. Até aqui, não vimos o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo sendo impedidos de fazer seu trabalho. Não estamos vendo uma falha completa da ordem democrática”, diz Garrett.

Enos enxerga a situação de outra maneira: “Para todos os efeitos, não há freios ao poder de Trump neste momento. A Suprema Corte parece não estar disposta a impor restrições, e tem, na verdade, autorizado a expansão de seu poder. O Congresso também”.

“O único freio de verdade, e a única coisa que poderá salvar a democracia americana, se ela de fato puder ser salva, é a força da sociedade civil —se as instituições podem ou não se levantar e resistir, porque a ordem política dos EUA não parece ser capaz de fazer isso.”

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