Empresas com ações na Bolsa começam a divulgar impacto financeiro das mudanças climáticas

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Temperaturas em alta, eventos climáticos extremos e mudanças ambientais permanentes, como falta de água. Esses são só alguns dos riscos que o aquecimento global começa a impor sobre as finanças, negócios e patrimônio das empresas.

A partir de 2026, os impactos financeiros dessa vulnerabilidade deverão ser obrigatoriamente divulgados pelas companhias de capital aberto, que incluem as que têm ações na Bolsa de Valores.

Impostas pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários, regulador do mercado), as normas fazem parte de um esforço global para conectar sustentabilidade e finanças. Elas foram criadas pela organização de padrões contábeis IFRS Foundation e batizadas de IFRS S1 e S2.

São ao menos 36 jurisdições no mundo em adoção, como União Europeia, Canadá e Japão. A ideia é que investidores, de todos os tamanhos, tomem melhores decisões.

Fernando Múrcia, professor e membro do centro de estudos contábeis Fipecafi, diz que os relatórios ajudarão a separar “o joio do trigo”, permitindo finalmente a comparação entre empresas quanto às mudanças climáticas. Em 2024, as temperaturas globais foram 1,5 grau celsius mais altas que o nível pré-industriais. Manter o patamar é considerado crucial para evitar um colapso.

“Um dos objetivos é capturar melhor dados exigidos pelo mercado. Muitos relatórios usados até agora têm informações com um tom de marketing. É só notícia boa. É do interesse do investidor? Não. Ele está interessado no que afeta o valor”, diz Múrcia, que leciona na Faculdade de Economia e Administração da USP.

Alguns avanços relevantes das normas IFRS S1 e S2 são os cálculos dos impactos climáticos no fluxo de caixa e necessidade de auditoria, que deverá diminuir o greenwashing (táticas de marketing enganosas sobre a atuação ambiental).

PIONEIRAS

Danos ao patrimônio são apenas um dos tipos de risco para o caixa sugeridos pela IFRS Foundation. Em meio ao aquecimento global, as empresas têm desafios de modelo de negócio, com novas leis em vigor e mudanças no comportamento do consumidor.

Para a varejista de moda Renner, cujas vendas somaram R$ 3,65 bilhões em 2024, mudanças no consumo ocorrem devido às ondas de calor. Casacos, jaquetas e calças tendem a vender menos. Em 10 anos, o impacto será de R$ 74 milhões.

“O nosso novo modelo já ajuda a gerir isso. Ao ter mais reatividade ao consumidor, temos agilidade. Independentemente de mudanças climáticas, às vezes o verão é mais frio e o inverno mais quente”, diz Daniel Martins, diretor financeiro e de relações com investidores.

Esta é a primeira vez que os valores desse risco já conhecido são estimados pela Renner, que atendeu as novas normas de forma voluntária em um dos primeiros relatórios do mundo. No Brasil, a empresa foi a segunda a publicar o documento, em julho, pouco depois da mineradora Vale. Apesar de a obrigatoriedade começar a valer apenas para o exercício de 2026, com divulgação no primeiro trimestre de 2027, a CVM estimula a antecipação.

Não são só riscos, porém, que as normas exigem. Costuma haver oportunidades. A Renner reforça que elas são até maiores. Os seus consumidores têm preferido roupas de origem sustentável, o que garantirá R$ 256 milhões ao caixa já que a empresa investe na transição.

RISCOS E OPORTUNIDADES IDENTIFICADOS PELA RENNER

Riscos

– Ondas de calor, reduzindo vendas de roupas de frio: de R$ 64 milhões a R$ 74 milhões no fluxo de caixa em 10 anos

Oportunidades

– Aumento nas vendas de produtos mais sustentáveis: de R$ 223 milhões a R$ 256 milhões no fluxo de caixa em 10 anos

“Quando adotamos os compromissos ambientais, a ideia de usar o algodão sustentável era seguir a lógica da preservação dos recursos. Agora a lógica muda porque vimos que tem dinheiro na mesa”, diz Eduardo Ferlauto, diretor de sustentabilidade.

No longo prazo, o diretor-financeiro Daniel Martins espera repercussões positivas para as finanças. “Não tenho dúvida de que empresas com bom mapeamento conseguirão levantar capital com taxas menores. O mercado premia quem gere bem os riscos”, diz.

MINERAÇÃO MAIS VERDE

Na Vale, é a perspectiva de um teto para a emissão de gases no Brasil que têm potencial de impactar as finanças. O cenário está previsto com o futuro mercado de carbono regulado, aprovado em 2024 e cujos detalhes estão em definição. O custo para a Vale seria de R$ 7 bilhões a R$ 19 bilhões ao ano a partir de 2030.

“É uma primeira estimativa. À medida que ganharmos maturidade, que as legislações forem implementadas e os preços definidos, a extensão dessa faixa vai reduzindo”, diz Rodrigo Lauria, diretor de sustentabilidade.

A adoção das normas foi facilitada pelo fortalecimento das políticas de sustentabilidade recentemente, de acordo com o executivo. As novidades em si foram os efeitos financeiros. Outro risco para os investidores é o impacto de chuvas sobre barragens. Desde os acidentes de Brumadinho e Mariana, destinou R$ 11 bilhões para armazenar resíduos a seco, sem gerar lama.

RISCOS E OPORTUNIDADES IDENTIFICADOS PELA VALE

Riscos

– Custo com emissões de carbono acima do permitido por lei: estimado entre R$ 7 bilhões a R$ 19 bilhões ao ano, a partir de 2030

Oportunidades

– Prêmio no preço do minério de ferro produzido com menos emissões de carbono: acréscimo estimado de R$ 1,29 bilhão sobre o resultado operacional de 2024

Em paralelo, 100% das barragens com materiais úmidos serão encerradas. Metade já foi desmontada. Quanto às oportunidades, a Vale vê espaço para se manter competitiva porque investe em tipos “mais verdes” de minério de ferro processado, e que tendem a ter prêmio no preço.

Os dados apresentados por Renner e Vale podem marcar o início de uma mudança de paradigma no mercado financeiro, que conseguirá de forma embasada priorizar empresas sustentáveis. Essa é a expectativa de Ana Lúcia Grizzi, consultora e especialista em governança climática: “Ao contrário da Europa, no Brasil são poucos os gestores de investimentos que exigem dados de sustentabilidade. O meu sonho é ver um redirecionamento de capital, olhando mais até para as oportunidades do que para riscos. Somos provedores globais de projetos ambientais”.

Em 2024, os investimentos das pessoas físicas no Brasil somaram R$ 7,3 trilhões, segundo dados da Anbima, organização que representa o mercado de capitais. Desse total, R$ 1,01 trilhão estava exposto a ações de empresas, via fundos ou compra direta na Bolsa.

DESAFIOS DE IMPLEMENTAÇÃO

Um dos motivos para a adesão voluntária apenas de Renner e Vale é a complexidade das normas. O Brasil tem cerca de 700 companhias de capital aberto e 439 listadas na Bolsa, que, se quiserem aderir antes do período obrigatório, têm o limite de 31 de dezembro. A Natura, com forte atuação ambiental, pretende também se adiantar.

Nas consultorias KPMG e EY, a mobilização para atender empresas de todo o mundo começou há três anos. A EY, que orientou Vale e Renner, vê alta da demanda pelo serviço no Brasil conforme o período obrigatório se aproxima e está fechando contratos.

Para Roberto Gonzalez, consultor e membro do CBPS, grupo que a acompanha a implementação das regras no Brasil, Renner e Vale levaram a um choque de realidade, mobilizando mais as companhias e contadores. “Os ‘degraus’ nos prazos foram positivos. O Brasil é especializado em trabalhar assim”, diz.

A baixa adesão voluntária seria fruto também do contexto, na visão do professor Múrcia. Empresas já vêm fazendo altos investimentos para se adequar à reforma tributária.

Para entender os gargalos, a CVM fez recentemente uma pesquisa com as empresas, que será divulgada em outubro. “Posso adiantar que a alta governança está envolvida e que as empresas demandam treinamentos, mas a gente entende que a própria IFRS Foundation tem os materiais de instrução”, afirma Nathalie Vidual, superintendente de finanças sustentáveis. Ela não descarta, porém, alguma flexibilização da implementação.

Com os dados de Renner e Vale nas mãos, o regulador vai também escolher uma das duas companhias para dar um retorno detalhado. A ideia é seguir fazendo considerações conforme mais empresas publicarem. “A CVM sempre defendeu que o período voluntário é de experimentação e de trocas”, afirma Nathalie Vidual.

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