ESPECIAL: 25 de MARÇO – 160 ANOS. Luiz Gama, a rua de Baixo e as raízes negras do Centro de São Paulo
A Doural, mais antiga loja na 25 de Março em operação, também foi a casa do abolicionista Luiz Gama
(Andre Lessa / Agência DC News)
A história negra da 25 revela como o trabalho urbano sustentou o comércio enquanto o país ainda negava direitos
Dados atuais mostram que desigualdades do século 19 ainda moldam a 25: presença negra é alta na base e rara nos comandos
Por Pedro JansenCompartilhe:
[AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DC NEWS] O homem mais importante da abolição no Brasil caminhava todos os dias pela mesma rua que hoje carrega sacolas, gritos de oferta e vitrines de plástico brilhante. Antes de ser a espinha dorsal do comércio popular, a 25 de Março, lá pelos idos de 1870, foi endereço de Luiz Gama – rábula, jornalista, poeta e libertador de mais de 500 pessoas escravizadas. Ali, onde hoje funciona a loja Doural, ele abriu uma escola gratuita, escreveu artigos incendiários e preparou defesas que fariam tremer juízes da Corte. Naquele mesmo entorno, porém, centenas de negros recém-libertos sustentavam o comércio urbano com trabalho manual pesado, preteridos por leis e políticas públicas. A rua que acolheu o brilho de Gama também refletia as sombras de um país que nascera racializado. Mais de um século e meio depois, parte dessas assimetrias permanece no tecido social: em São Paulo, apenas 6% das pessoas negras estão em cargos de direção e gerência, segundo a prefeitura – um desequilíbrio que ajuda a explicar por que, na 25 de Março, a presença negra é numerosa na base das operações, mas quase invisível nos postos de comando. Revisitar essa história, no Especial 25 de Março – 160 anos, é reconhecer como a rua que move milhões também guarda marcas profundas do país que a formou.
A desigualdade que se consolidava ali não nasceu por acaso. Segundo Taís Dias de Moraes, doutora em História Econômica pela USP, “a transição do trabalho escravizado para o trabalho livre não abriu portas na mesma velocidade que abriu ruas”. Um marco desse descompasso foi a Lei de Terras de 1850, que transformou o direito antes baseado na ocupação em propriedade adquirida apenas por compra (inviável para libertos recém-saídos da escravidão). Ao mesmo tempo, a urbanização acelerada de São Paulo multiplicava funções até então inexistentes no campo: artesãos, carregadores, quitandeiras e domésticas. Esse ambiente urbano, porém, operava sob um princípio estrutural: a ideia de que o trabalho manual era inferior e deveria ser delegado.
Segundo o historiador Ramatis Jacino, doutor em História Econômica pela USP e professor da UFABC, “era comum que donos de pequenos empreendimentos tivessem um escravizado para fazer os trabalhos e os brancos ficavam como chefes”. Na antiga rua de Baixo (futura 25 de Março) essa lógica se tornaria ainda mais evidente: junto ao comércio nascente, multiplicavam-se funções exercidas majoritariamente por trabalhadores negros, em condições muitas vezes precárias. Com o tempo, essa divisão racial do trabalho foi se naturalizando. “Muitas dessas posições eram análogas à escravidão ou ficavam à margem do sistema, e mesmo assim faziam parte da estrutura”, afirma Jacino. Para a historiadora Maria Helena P. T. Machado, professora titular de História da USP, “a rua era o espaço de trabalho e vigilância dos escravizados – eixo da economia cotidiana da cidade”. Esse movimento moldou o Centro como território do trabalho negro urbano e, mais tarde, influenciaria o próprio funcionamento da 25 de Março, onde os libertos realizavam tarefas invisíveis, mas indispensáveis ao comércio que ali florescia.
O ABOLICIONISTA – Mas onde havia desigualdade também havia luta, e naquela mesma rua onde a estrutura do trabalho urbano se reorganizou sobre uma base profundamente racializada, surgia uma figura capaz de tensionar esse sistema por dentro. No coração da antiga rua de Baixo, ainda antes de receber o nome de 25 de Março, caminhava diariamente o homem que transformaria tribunais, desafiaria a retórica escravocrata e inauguraria um dos capítulos mais decisivos da história da liberdade no Brasil: Luiz Gama.
Luiz Gama circulava pela região justamente no período em que São Paulo experimentava sua expansão urbana, entre o final da década de 1860 e o início da década de 1870. Segundo Lígia Fonseca Ferreira, doutora em Letras e professora da Unifesp, especialista em Luiz Gama, e autora do livro Lições de Resistência (2020) é possível situá-lo “em intensa atividade na imprensa, na política e no foro paulistano já em 1869”, frequentando ruas e instituições que ficam a poucos metros do eixo que mais tarde se tornaria a 25 de Março. Não por acaso, foi ali que Gama abriu, em 1869, uma escola gratuita para crianças negras e um curso noturno para adultos – num prédio simples da rua de Baixo, à época numero 99, entre armazéns e pequenas oficinas. A escolha daquele endereço, hoje ocupado pela loja Doural, não era acidental: a rua já concentrava movimento popular e trabalho manual, um território negro antes de se tornar território comercial.
Anúncio de Luiz Gama, no Correio Paulistano, em 25 de Janeiro de 1870 (Correio Paulistano / Biblioceca Nacional)
Filho de Luíza Mahin, líder de levantes na Bahia, e vendido pelo próprio pai aos 10 anos, Gama transformou a alfabetização tardia em arma política. Libertou-se por via judicial, tornou-se rábula e reinventou o conceito de advocacia no século 19. Em sua tese sobre o pós-abolição, o pesquisador Ramatis Jacino observa que Gama “ergueu uma militância jurídica inédita no país, usando a lei contra aqueles que a escreviam”. A audácia se refletia também na escrita: em 1859, Gama publicou versos em que denunciava a exclusão racial do acesso ao conhecimento –“Ciências e Letras / Não são para ti; / Pretinho da Costa / Não é gente aqui”. O poeta sabia que liberdade sem educação era liberdade precária.
Esse impulso pedagógico explica a escola erguida no endereço que hoje é símbolo do varejo popular. Para Gama, como demonstra a análise de Taís Dias de Moraes, “a educação era o único meio pelo qual o liberto poderia disputar a cidadania”. No interior daquela sala improvisada da rua de Baixo, crianças aprendiam a ler e adultos aprendiam a argumentar – um gesto radical num país que, às vésperas da abolição, ainda restringia à elite branca o acesso à instrução formal. Ali, a poucos metros do Mercado, Gama criava um laboratório de liberdade antes mesmo que o país se declarasse livre.
REFLEXOS ATUAIS – A abolição redesenhou o país no papel, mas não apagou a lógica que organizava quem podia ascender e quem seguia empurrado para as franjas da economia urbana. Essa herança atravessou o século 20, atravessou o ciclo industrial paulistano e resiste no século 21 – agora medida não por relatos de época, mas por estatísticas oficiais. Segundo a Prefeitura de São Paulo, apenas 6% das pessoas negras ocupam cargos de direção e gerência na cidade, proporção incompatível com a dimensão da população negra paulistana. No estado, dados da Pnad Contínua mostram que trabalhadores negros têm uma taxa de informalidade 9 pontos percentuais superior à de trabalhadores brancos, diferença que se mantém estável há mais de uma década.
A disparidade também aparece na renda. De acordo com o Dieese, com dados do IBGE, pessoas negras ganham, em média, cerca de 40% menos que pessoas brancas no Brasil – um hiato produzido por fatores que vão do acesso desigual à educação à menor presença de negros em setores de alta remuneração. Segundo a pesquisa, um cidadão negro ganha, em média, R$ 899 mil a menos que um branco durante sua jornada laboral ao longo da carreira. A diferença sobe para R$ 1,1 milhão quando há curso superior. Enquanto uma a cada 48 pessoas pretas assume cargos de liderança, entre os brancos a proporção é de 27 pessoas.
Esse cenário foi aos poucos moldando a participação do negro liberto no contexto geral da cidade de São Paulo. Patrícia Anastacio, advogada, pesquisadora sobre mercado de trabalho e conselheira da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), faz um paralelo entre a realidade vivida durante o Brasil Império com os dias atuais. “Olhando para a 25 de Março de hoje, o vendedor ambulante continua sendo o negro”, diz. “Se a gente olhar para as lojas, quem ainda é a maioria dos proprietários? Não são as pessoas negras”. Para a advogada, a situação da 25 de Março é um reflexo do que se vê em outros estratos do comércio e empreendedorismo, com a baixa presença do negro em espaços de poder e decisão.
Esse padrão também aparece nas ocupações. O economista, Rodrigo de Azevedo Weimer da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser, afirmou que os trabalhos vinculados à logística manual, carga, limpeza urbana e comércio informal continuam proporcionalmente mais ocupados por pessoas negras. A rua de Baixo, que depois se tornaria a 25 de Março, era um desses territórios: lugar de circulação, esforço físico, prestação de serviços e fiscalização policial. Hoje, a escala mudou (a rua é maior, o comércio é outro, o fluxo beira 200 mil pessoas por dia), mas a distribuição racial do trabalho mantém contornos familiares.
RESISTÊNCIA – Se a história da 25 de Março registra a permanência de desigualdades, ela também guarda espaços de afirmação negra que sobreviveram à lógica excludente do século 19. Ao longo das décadas, entre camelôs, galerias estreitas e fluxos intermináveis de consumidores, consolidou-se na região um eixo pouco lembrado, mas central para entender a rua como território cultural: o comércio de artigos religiosos de matriz africana.
Na Ladeira Porto Geral, no número 106, funciona um dos pontos mais simbólicos desse circuito. O prédio de sete andares reúne cerca de quinze lojas dedicadas a insumos para umbanda, candomblé, jurema e outras tradições afro-brasileiras: guias, ervas, imagens, velas, pembas, contas, objetos rituais. Há concorrentes e vizinhos que vendem produtos semelhantes ao longo da rua – mas ali, naquele edifício específico, formou-se uma constelação de comerciantes, sacerdotes, fiéis e frequentadores que atravessa gerações. É um núcleo de resistência religiosa no coração comercial de São Paulo.
Esse pequeno território diz muito sobre as camadas que compõem a 25. A rua nasceu marcada pela presença de trabalhadores negros, expulsos do acesso à terra e empurrados para serviços urbanos; cresceu impulsionada por comerciantes árabes, judeus, italianos e chineses; e, no meio dessa paisagem plural, preservou expressões profundas da religiosidade brasileira. Em um país onde templos afro-brasileiros ainda sofrem ataques e onde a intolerância cresce em ciclos, o fato de um prédio inteiro sobreviver como referência religiosa dentro do maior polo popular do país não é apenas coincidência comercial. É permanência histórica.
Ao olhar para a 25 de hoje, é possível ver traços desse percurso: trabalhadores negros ainda são maioria nos serviços de rua, mas também estão entre os que mantêm vivas práticas religiosas que ajudaram a formar a cultura brasileira. A rua que acolheu a escola de Luiz Gama, no século 19, agora abriga terreiros urbanos em miniatura, condensados em bancadas iluminadas por velas e cheiros de mirra. Entre sacolas de plástico, lojistas apressados e turistas em busca de preços baixos, sobreviveram espaços que reafirmam outra dimensão do legado negro na cidade – uma que não foi apagada nem pela história, nem pelo tempo.
No dia da Consciência Negra, as palavras do mais importante jurista da luta contra a escravidão
“Se algum dia […] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica […]”