Esquerda mantém mobilização de rua como desafio após impulso da MPB

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O cantor e compositor Caetano Veloso escolheu “Alegria, Alegria”, canção que compôs em 1967, para figurar em seu ato contra a anistia e a PEC da Blindagem no domingo (21), no Rio de Janeiro. O sentido de convocação já se anuncia nos três primeiros acordes: mi maior, lá maior e dó sustenido maior. A progressão interpela o ouvinte, deixando-o atento e forte para acompanhar a letra que se segue à introdução ribombante.

Em um dos maiores protestos da esquerda desde a eleição de 2018, os artistas da MPB cumpriram um papel fundamental para mobilizar a militância, avaliam especialistas ouvidos pela reportagem. Ademais, os protestos em todo o país evidenciaram a natureza impopular da PEC da Blindagem, que poderia dificultar investigações contra deputados e senadores e que acabou enterrada pelo Senado nesta quarta (24).

De todo modo, a conjuntura apresenta agora um impasse ao campo progressista, que busca manter a mobilização, com lideranças difusas e Lula (PT) um pouco distante, e resgatar uma identidade.

Os atos foram anunciados às pressas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Trabalhadores Sem Teto), apoiados pelas frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. O chamamento só se intensificou, no entanto, quando a classe artística aderiu à causa.

Em especial, Caetano e Paula Lavigne, sua mulher e empresária, lideraram a iniciativa para a realização dos protestos. Mesmo que em São Paulo políticos tenham discursado, o protagonismo ficou com artistas, como Chico Buarque, Ivan Lins, Geraldo Azevedo e Gilberto Gil, que entoaram clássicos da música popular brasileira.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, Lavigne disse que a manifestação não foi da esquerda, mas da sociedade civil como um todo.

Autor dos livros “Viagem do Recado” e “O Som e o Sentido”, José Miguel Wisnik afirma ter ficado evidente a capacidade de mobilização política dos compositores. Afinal, a canção tem a capacidade de “dar o sinal de alerta para ameaças em curso, de acender o desejo de vontade política e de corresponder a um sonho de nação, entorpecido e manipulado pelas motivações torpes”.

“A canção no Brasil é uma imensa reserva de sensibilidade não autoritária e, no caso de domingo, antifascista”, diz Wisnik, também cantor e compositor. “A política é uma festa da memória compartilhada, dos afetos de afirmação da vida, do sonho de um povo inclusivo.”

Ao longo do século 20, os artistas intervieram em momentos conturbados da política. No ato musical, “Cálice”, de Chico e Gil, lembrou o enfrentamento à ditadura, e “Vai Passar”, parceria de Chico com Francis Hime, a redemocratização.

“Artistas como eles fazem parte de um ciclo histórico que remonta a mais de meio século, mas não são datados, como acontece com as artes fortes, mas com particularidade de ser aquilo que mais parece segurar as pontas do Brasil quanto tudo degringola. Ainda. Por que não?”, questiona Wisnik.

Apesar da derrubada no Senado da PEC da Blindagem, o Congresso ainda articula uma proposta de redução das penas dos condenados pela tentativa de golpe de Estado de 2022 e 2023. O projeto poderia beneficiar também o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), condenado a mais de 27 anos de prisão.

Além do chamamento da classe artística, a esquerda foi às ruas pela natureza impopular da PEC, afirma Marco Antonio Carvalho Teixeira, cientista político da FGV. “Ficou evidente que a proposta é uma medida de autoproteção. Foi um tiro no pé, até porque a indignação mobilizou o povo.”

Segundo a USP, os atos se equipararam, em público, à manifestação bolsonarista do 7 de Setembro. Estiveram no domingo 41,8 mil pessoas no Rio de Janeiro e 42,4 mil em São Paulo.

Cientista político da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Leonardo Avritzer diz que, desde a conjuntura antes do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a esquerda não se organizava de maneira tão engenhosa. O dilema, afirma, é o cenário com lideranças difusas no campo progressista. Por isso, é improvável manter a mobilização só com a classe artística.

“Ainda é cedo para dizer que a esquerda retomou as ruas e acho que é pouco provável que os artistas sejam capazes de atuar conjuntamente em todas as pautas de esquerda”, afirma ele.

Também cientista político, Paulo Henrique Cassimiro, da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que o campo progressita precisa ainda resgatar uma identidade. Ele diz ter havido um erro de cálculo político por parte do centrão, com a PEC da Blindagem sendo aprovada no mesmo momento em que se discute a dosimetria.

Cassimiro afirma que a PEC da Blindagem gerou custo político para a proposta de redução de penas aos golpistas. Afinal de contas, os atos de domingo se posicionaram contra as duas matérias.

“O motor dessa mobilização foi a insatisfação com o Congresso, que hoje tem a pior avaliação entre as instituições do país”, diz. “Os atos mostraram um caminho para o campo da esquerda. Se Paula Lavigne conseguir articular um ato desse toda vez que for necessário.”

O protagonismo de Caetano, Chico e Gil também pode ser explicado, segundo diz o professor, pela figura de Lula, que não produziu sucessor à altura. Em sua visão, o campo progressista tornou-se muito dependente do presidente, que manteve certa distância dos protestos. Como mostrou a Folha de S.Paulo, o objetivo dele foi não gerar ainda mais atrito com o Congresso Nacional.

“Lula assumiu a posição tradicional que o estadista deve assumir, mas, pensando o que é política hoje, ele deveria ter se posicionado mais. A neutralidade não vai trazer mais capital político, inclusive por parte do centrão.”

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