Falta de transparência sobre ajuda em Gaza alimenta disputa entre Israel e ONU

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KEREM SHALOM, ISRAEL(FOLHAPRESS) – Lentilhas, grão-de-bico, macarrão, farinha, um litro de óleo, sal e um saco de batatas. Esse é o kit distribuído para palestinos na Faixa de Gaza durante a operação coordenada entre o Exército de Israel e a Fundação Humanitária de Gaza (FHG) a partir da passagem de Kerem Shalom, que a reportagem visitou no último dia 15.

Os recursos são organizados para que durem por cinco dias em uma família com cinco pessoas. Depois, são levados aos quatro centros de distribuição em Gaza operados pela FHG, uma obscura organização com sede nos Estados Unidos e pouca clareza sobre a origem de seu financiamento, que tem sido alvo de críticas da comunidade internacional.

A insuficiência da entrada de ajuda humanitária em Gaza tem sido parte do combustível do enfrentamento político entre Israel e seus aliados contra a ONU, criticada por inação e viés anti-Israel por civis e militares com quem a reportagem conversou ao visitar o país.

Antes do bloqueio da entrada de ajuda, que Tel Aviv retirou após 78 dias, em maio, o sistema que vigorava no território tinha como base a distribuição a cargo de agências internacionais, principalmente das Nações Unidas.

Desde então, o recente vetor de distribuição operado pela FHG a partir de quatro pontos de coleta tornou-se o principal canal e tem funcionado sob supervisão do Exército israelense em um esforço para contornar o sistema operado pela ONU e, assim, segundo os militares, evitar roubos do Hamas.

A divisão entre as duas modalidades é de 50% para cada, segundo o Exército, que trata as duas vias de ajuda oficialmente como complementares.

Nos últimos dias, uma série de vídeos e publicações do Exército e porta-vozes militares buscam reforçar a negativa de que exista um bloqueio à entrada de recursos por parte de Israel, como acusam algumas organizações internacionais.

De acordo com o Exército, toneladas de ajuda estão em Gaza à espera de distribuição, após passarem pelos postos de controle israelenses. Ainda segundo dados dos militares, recursos relativos a 950 caminhões de auxílio estão parados em pátios, do lado palestino, à espera de coleta pelas agências da ONU.

Já a FHG, que recebe sua parcela de recursos diretamente em seus centros de distribuição em Gaza, critica a ONU, afirma que se ofereceu para distribuir o auxílio parado dentro do território, e acusa a organização internacional de fazer uma parceria com o Hamas.

“Agências da ONU continuam afirmando que a falta de permissões e segurança impedem a entrega de ajuda, mas a realidade em solo conta outra história. Isso não é um problema de acesso, mas operacional”, afirmou a FHG em carta publicada nas redes sociais, na qual acusa a ONU de “falhas sistêmicas amplas”.

Críticas vindo de figuras públicas ressaltam, porém, que a questão não é puramente logística e se desdobra em um crescente apontar de dedos. Em publicação compartilhada pelo chanceler israelense, Gideon Sa’ar, o embaixador dos EUA em Israel, Mike Huckabee, chama a ONU de “ferramenta do Hamas” ao lado de imagens de pacotes de ajuda em pátios.

Por outro lado, as agências das Nações Unidas que operam no território, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Unicef (Fundo da ONU para infância), entre outras, criticam as ações de Israel e da FHG, classificando-as como perigosas para os civis e insuficientes para os objetivos de ajuda humanitária, além de afirmarem que a operação serve a propósitos militares de Tel Aviv.

Pessoas a par do trabalho de agências da ONU ouvidas pela reportagem afirmam que o Exército de Israel não assegura condições mínimas para a distribuição da ajuda em áreas de conflito, que poderia ser feita com a criação de perímetros de segurança, por exemplo. Falta ainda combustível para a logística de colheita e distribuição dos recursos.

Os quatro pontos de distribuição da FHG ficam dentro de áreas para as quais há ordens para esvaziamento emitidas pelo Exército de Israel, três no sul e um no norte. Isso significa que palestinos precisam retornar a esses locais de conflito para obterem uma caixa de comida.

Avisos sobre o funcionamento dos centros são publicados em canais digitais, como uma página no Facebook e um canal no Telegram. Por ali também é indicado quem deve se dirigir aos locais de distribuição e em qual horário.

A fila para cada centro se inicia quilômetros antes do local, e os horários de abertura têm se limitado a poucos minutos, segundo levantamento do jornal britânico The Guardian, o que dificulta o acesso de quem se arrisca em uma zona militarizada. Quase 900 pessoas foram mortas tentando buscar comida em Gaza nas últimas semanas, mais de 600 nos arredores dos centros da FHG, segundo a ONU e palestinos.

No pátio visitado pela Folha de S.Paulo em Kerem Shalom, a cerca de 500 metros da grade que separa Gaza de Israel, centenas de caixas e fardos de recursos esperam para serem transportados para dentro do território palestino sob sol forte.

Cães farejadores inspecionam cada bloco de caixas para impedir a entrada de materiais que podem ser usados pelo Hamas, como pequenos drones, e cigarros —hoje uma espécie de moeda paralela no território conflagrado, de acordo com o Exército.

A reportagem foi autorizada a fotografar e fazer vídeos dos fardos de ajuda, do pátio e de Gaza por cima do muro. Não houve autorização para registrar imagens de outros veículos da operação, militares e funcionários, além da ação dos cães farejadores.

A reportagem também pôde registrar materiais médicos e comida para bebês do lado israelense, que chegavam em caminhões ao posto de Kerem Shalom com etiquetas indicando a organização distribuidora de destino. Não foi possível verificar se havia combustível, que estava armazenado em local fechado em razão do sol e temperaturas fortes, segundo o Exército.

A entrada no território palestino não foi permitida, como tem sido a regra. Poucas vezes jornalistas foram autorizados a entrar em Gaza, e sempre acompanhados do Exército, desde o início do conflito.

Diversos veículos da mídia internacional lançaram comunicado conjunto nesta quinta (24) pedindo que Israel autorize o livre acesso de jornalistas, em meio a imagens e relatos de desnutrição grave no local.

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