Golpismo bolsonarista inova com corporativismo militar e populismo globalizado em redes

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre tantos golpes e tentativas de golpe ocorridos no período republicano, o golpismo bolsonarista guarda traços semelhantes aos de muitas aventuras autoritárias do passado, mas ao mesmo tempo possui características próprias, que a tornam única nesse imenso painel nacional da infâmia.

Segundo estudiosos do tema, o perfil mais corporativo (para preservar benefícios e manter cargos) por parte de militares, junto a uma mobilização marcada pelo intenso uso de redes digitais numa conjuntura de um populismo de extrema direita globalizado, além de instituições mais robustas, são alguns dos distintivos da trama golpista que levou Jair Bolsonaro (PL) e vários de seus asseclas ao banco dos réus, sob acusação de tramarem impedir a posse de Lula (PT) após a eleição presidencial de 2022.

Como aponta o historiador Carlos Fico, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em seu recém-lançado livro “Utopia Autoritária Brasileira”, todas as 14 rupturas institucionais da República (incluindo as tentativas, entre as quais a de Bolsonaro) foram protagonizadas por integrantes das Forças Armadas.

Na avaliação de Fico, o que demarca as diferenças entre cada uma delas é a motivação. Na proclamação da República e nas tentativas de golpe posteriores, aponta, havia uma justificativa mais difusa de “refundar a República”.

“Não se sabe muito bem o que é isso, mas os militares dessa fase inicial diziam isso: essa não é a República que nós fizemos [lá no golpe militar da Proclamação], então é preciso refundá-la”, diz ele.

Durante o tenentismo, prossegue Fico, veio a fase do ativismo militar, muito associada a denúncias de fraude eleitoral na Primeira República.

“E depois, grosso modo, vem uma fase de motivação anticomunista, sobretudo depois da rebelião comunista de 1935, os episódios posteriores têm essa motivação ideológica, 37, 45 etc, até o golpe de 64.”

Segundo o historiador, a motivação dos militares bolsonaristas se diferencia por não ter natureza ideológica, mas “muito mais relacionada à preservação de vantagens materiais: a Previdência especial que eles têm [e que atuam politicamente para manter] e os milhares de cargos que tiveram no governo Bolsonaro”.

A historiadora e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Heloisa Starling, por sua vez, diz que, se em 1964 havia um projeto por parte dos militares, no sentido de construir um Brasil grande, com um complexo industrial militar, não há um plano correspondente por parte do bolsonarismo.

“Nós podemos discordar [desse projeto], mas independente disso, eles tinham um projeto para o Brasil. Hoje não têm. Quando você pensa nesses militares, não existe projeto”, diz ela, que vê o bolsonarismo, em contraposição, como um governo pautado pela destruição.

Autora da obra “Brasil: uma Biografia”, em conjunto com Lilia Schwarcz, Starling aponta, por outro lado, como ingredientes em comum, entre um movimento e outro, a forte presença do anticomunismo -que ela vê hoje quase como uma caricatura- e de um apelo religioso, que neste caso teria passado de um predomínio católico para o evangélico.

Historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, diz que ao mesmo tempo em que o 8 de Janeiro é marcado pela repetição de padrões vistos em outros episódios de cunho golpista ao longo da República, há desta vez também uma forte influência de um populismo de extrema direita global e de caráter digital -fazendo um paralelo, por exemplo, com o ataque ao Capitólio nos Estados Unidos.

“Essa questão das redes foi muito útil estrategicamente para os planos golpistas, justamente na tentativa de dar um caráter de mobilização popular e de falta de estrutura organizativa”, diz ele, que é coordenador do Observatório da Extrema Direita.

Caldeira aponta que, apesar dos indicativos de uma forte estruturação do movimento, muitos dos envolvidos nos ataques à praça dos Três Poderes trabalhavam com a ideia do “nós somos o povo e nós vamos tomar o poder como verdadeiro povo”.

“É uma retórica profundamente populista, desse novo fenômeno interessante que é o populismo de extrema-direita, muito influenciado pelas novas formas [de comunicação], pelos mitos mobilizadores. Um fenômeno com padrões historicamente consolidados, mas que traz também questões muito novas.

O historiador destaca, por exemplo, que muitos indivíduos estariam se radicalizando não por meio do contato com a estrutura de um partido, de uma associação de bairro ou algum setor religioso, mas por meio de um discurso organizado e articulado nas redes.

“Existe um novo tipo aqui, não apenas de estrutura comunicacional, mas também de estrutura em rede de formação política”, avalia Caldeira.

Referência no país em trabalhos de história oral com militares da ditadura, a cientista política Maria Celina D’Araújo observa que o período que mais se presta a uma comparação com o caso de Bolsonaro é da chamada República de 46, considerando o contexto histórico minimamente parecido, com certa estabilidade democrática.

Uma diferença entre os dois cenários, afirma, é que “ali [na República de 46] as Forças Armadas estavam explicitamente divididas, elas ou eram contra ou a favor do governo”.

“No caso do Bolsonaro, a gente não sabe explicitamente quem é quem nas Forças Armadas. Esse é um dado novo da República brasileira, a gente não sabe nada sobre o que pensam os nossos comandantes. Na República de 46 a gente sabia”, diz D’Araújo, professora aposentada da PUC-RJ e do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV e coorganizadora de obras como “Geisel” e “Visões do Golpe”, que reúnem depoimentos de figuras-chave da ditadura.

Para D’Araújo, um aspecto relevante é o fortalecimento do Estado de Direito no país, ainda que imperfeito e sujeito a ameaças do tipo.

“Bem ou mal, [hoje] a gente tem instituições democráticas, uma Constituição democrática. Então não houve [no caso de Bolsonaro] uma adesão institucional completa de vários atores políticos. As próprias Forças Armadas não entraram como instituição, e outras instituições, especialmente o Judiciário, foram muito ativas em denunciar o que estava acontecendo”, observa.

“As instituições da democracia funcionaram, no sentido de criar uma ambiência desfavorável ao golpe, como acabou acontecendo -o golpe não veio.”

Também Fico (UFRJ) reconhece que já é algum avanço em relação ao passado o fato de pela primeira vez na história os militares terem virado réus por golpismo. “Isso nunca aconteceu realmente, e muito provavelmente vai ter condenação.”

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